Luís Manuel Pereira da Silva
Hoje, dia 9 de maio de 2023, na iminência da abertura do ano jubilar dedicado à celebração dos 600 anos do lançamento da primeira pedra da igreja do Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia, ou de São Domingos, agora catedral de Aveiro, partiu o Padre Georgino ao encontro de Deus que se fez Rosto visível no Filho do Homem e assumiu as dores da Humanidade.
Tive-o como meu professor de cadeiras de Pastoral e em formações sobre doutrina social da Igreja e como um sábio mestre em quem sempre encontrei a preocupação com a leitura dos ‘sinais dos tempos’, mesmo no turbilhão das tempestades contemporâneas.
De 2015 até hoje, fizemos caminho, juntos, na Comissão Diocesana da Pastoral, a que lhe sucedi, na presidência, contando com a sua assistência e acompanhamento espiritual. Nunca recusava uma ideia ou um caminho, mas obrigava à reflexão sobre as opções, lançando interpelações em que eu percebia, por vezes, uma velada e sempre respeitadora crítica, particularmente quando a tentação era fechar ou enclausurar, ir pela via mais segura e frequente; as suas interrogações desafiavam a abrir ao mundo, aos outros, trazendo o fora para dentro e levando o dentro para fora, num dinamismo de superação dos próprios limites.
Era um pastoralista nunca satisfeito com as conquistas, pois o tempo continuava a urgir. Julgo que uma das suas maiores intuições, nestes tempos em que a Igreja se interroga, diante do seu passado, sobre o seu futuro, é que a evangelização se faz com rostos e presença. Nunca temeu, por isso, apresentar os ‘santos’ do aqui e agora, reconhecendo, neles, ‘rostos de misericórdia’, ‘veículos’ pelos quais Deus se torna presente na história dos homens. No trabalho de preparação de cada revista ‘Igreja Aveirense’, em que contávamos com a abnegada dedicação do diácono Carlos Nunes, não lhe escapava a vida real da diocese, sendo que centrava, sempre, nas pessoas, pois por elas Deus atua na história. A história, para ele, não era uma sucessão de eventos quantificáveis, mas era a narrativa de vidas que se cruzam e pelas quais se realiza o Reino, em particular, pela via da justiça e da misericórdia: Deus, para o Padre Georgino, compadece-se e os que se reconhecem crentes não podem senão compadecer-se, também, das dores dos seus irmãos. Mais do que as palavras ou as datas, importavam as pessoas, que retratava em rubricas como ‘pessoa notável’ ou ‘rostos de misericórdia’. Esta última serviria de fonte para um dos muitos livros que publicou e em que se sente a sabedoria de um olhar que vê a ação de Deus em vidas e estilos de vida de que irradiam ‘clarões de esperança’ (um outro livro em que perpassa esta visão da vida e da fé), ‘clarões’ de quem se pode esperar que concretizem o desejo de ‘humanizar a sociedade’ (um outro título, publicado em 2013). Como recorda, na apresentação dos ‘rostos de misericórdia’, estes rostos são os de ‘discípulos missionários, arautos e construtores de um mundo “empapado” na seiva da misericórdia e da justiça […]’. Guardou, até aos últimos momentos da sua vida, esta certeza de que Deus se torna um de nós, connosco, na história real dos que se abrem à Sua misericórdia e que, a partir dela, concretizam neste mundo o desejo do mesmo Deus de que este seja mais justo.
Foram preocupações omnipresentes, no seu pensamento, na sua ação, a justiça, a denúncia da injustiça, a preocupação com os mais frágeis ou, no dizer do Papa Francisco (com quem se identificou sempre e cujas intuições antecipou pelo seu genuíno espírito conciliar) com os que estão nas periferias, coerente com o seu ímpar conhecimento da Doutrina Social da Igreja que perpassa por todos os seus textos e obras.
A sua visão da pastoral, perenemente retratada na singular marca deixada no II sínodo diocesano (1990-1995), de que foi um dos grandes preconizadores, sintonizado com a correspondente ousadia de Dom António Marcelino, era, bem certo, assente na surpresa e novidade de Deus, mas convencido de que aos homens deveria caber a correspondente organização (programação, avaliação e revisão), para que a Deus coubesse esse exclusivo da fonte do assombro e aos homens a correspondente materialização. A sua visão de quem está aberto ao novo, à novidade em que se rompem as rotinas, não colidia com uma grande preocupação em estruturar e organizar. A sua voz sempre foi a de alguém que desafiou a que se superassem os amadorismos e improvisações, repto que permanece vivo e atual e a que uma justa homenagem deverá secundar, fazendo-se real na organização pastoral das comunidades da Igreja em Aveiro.
Estou certo de que a marca indelével do sr. Pe. Georgino, cuja voz ouvi sempre acompanhada com grande humor e alegria, serenidade e acolhimento, se tornará real se a Igreja em Aveiro souber, com rumo e pés firmes e assentes no tempo real e concreto, ser ousada, por um lado, sendo capaz de ouvir e estar atenta aos ‘sinais dos tempos’, mas também se souber superar as improvisações inconsistentes, organizando-se e pensando o futuro, mas sem se aprisionar aos esquemas, relendo e renovando, e sabendo, ainda, que Deus se faz rosto nas vidas simples de todos e cada homem e mulher por quem se realiza a justiça e que suspiram por misericórdia. A sua visão da Igreja nunca foi a de um templo fechado, mas a de um rio a transbordar que se faz nascente renovada de vida justa e humanizada. As suas reflexões apelavam, até ao seu último texto, publicado em 19 de março de 2023, a que se fizesse um permanente reler dos textos de natureza religiosa como lugar de um acontecer humano, tornando-os significativos. Assim lembra, no epílogo do livro ‘humanizar a sociedade’, quando toma a ‘paixão de Jesus [como] ícone do amor de intervenção humanizante’ (p. 303).
Na sua vida, a fé não é um lugar distante: é clarão com que se enchem de luz as sombras das vidas dos homens.
Obrigado, Pe. Georgino, bom amigo. Vele por nós, junto do Pai.