Ter. Abr 16th, 2024
Artigo e foto recolhidos do SNPC

Os desafios culturais com os quais a Igreja e o Concílio Vaticano II tiveram de se confrontar nos primeiros anos da década de 60 não nasceram inesperadamente. Eram o ponto de chegada da longa evolução da cultura ocidental moderna, cujas origens remontam ao Iluminismo. Esses desafios consolidaram-se com a Revolução Francesa e com a Revolução Industrial, e foram alimentadas depois no século XIX, por um lado, pelas grandes correntes filosóficas modernas (idealismo alemão, positivismo, marxismo, vitalismo niceno, evolucionismo) e pelo nascimento das novas ciências humanas (psicologia,sociologia, psicanálise…); por outro, pelo advento dos regimes políticos constitucionais, republicanos e democráticos, e pelos diversos sistemas económicos nascidos a partir da vaga das ideologias de massa e pelas descobertas técnico-científicas. (…)

Desta profunda transformação cultural e social nascem, portanto, os desafios que a Igreja em estado de Concílio teve de enfrentar nos inícios dos anos 60: a “razão”, que se tinha distanciado da “fé”, reivindica a autonomia relativamente a Deus e autoproclama-se ela própria um absoluto. Nega-se que ciência e religião possam encontrar-se. A política e a economia refutam toda a relação com a ética; a filosofia do ser é abandonada, para aportar ao niilismo e ao “pensamento débil”. O positivismo e o cientismo, que se respiram com o ar, eliminam do horizonte humano tudo aquilo que ultrapassa os sentidos ou que não pode ser verificado experimentalmente. A religião é considerada (ou tolerada) no melhor dos casos como uma mera questão subjetiva, mas sem relevância pública. Estamos assim no “secualrismo” (…) e no “relativismo ético”, ou seja, no eclipse do sentido moral e na negação de toda a norma ética transcendente. Estes, numa rápida síntese, são os aspetos culturais negativos dos primeiros anos da década de 60, que faziam de pano de fundo à convocação do Concílio Vaticano II (…): com a afirmação do subjetivismo exasperado e do individualismo nasceriam as graves contradições do nosso tempo. Com efeito, por um lado, a modernidade realizou imponentes estruturas económicas, técnicas e sociais, multiplicou a quantidade dos bens produzidos, dando ao ser humano mais “ter”; por outro, contudo, a perda de tensão ética e de solidariedade gerou novas formas de pobreza humana e de marginalização, mortificando o ser humano no seu “ser”.

Por um lado, a modernidade criou espaços e estruturas formais de liberdade e de democracia, adquirindo valores importantes, como a laicidade, a tolerância, o pluralismo, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião; por outro, todavia, libertou forças negativas que em muitos casos frustraram as conquistas feitas (basta pensar nos nacionalismos, nas ditaduras e nos totalitarismos do século XX). Se por um lado a modernidade deu vida a organismos internacionais de justiça e de paz, por outro, no entanto, multiplicaram-se as guerras, acelerou-se a corrida aos armamentos, nasceu o pesadelo atómico. Até os extraordinários feitos da biologia, da genética e das ciências médicas, em vez de se tornarem razões de vida, ameaçam mudar-se em razões de morte (…).

Vejamos, então, as principais dificuldades que os desafios da modernidade criaram ao Concílio Vaticano II.

1. Uma primeira série de dificuldades vinha do exterior e traduz-se na dificuldade da comunicação com a cultura moderna, que impunha não só o uso de uma nova linguagem, mas também a discussão sobre valores fundamentais, que deixaram de ser universalmente partilhados. Com efeito, a Igreja e a cultura moderna usam conceitos e termos que aparentemente são idênticos, mas na realidade diferem profundamente.

Por exemplo, ambas falam do ser humano e colocam-no no centro do discurso sobre o mundo e sobre a história. Mas a Igreja entende o ser humano como um ser pessoal, orientado para Deus e para um fim transcendente; a cultura moderna, por seu lado, faz do ser humano um absoluto, o dono de si mesmo e do mundo, que cria e transforma o universo com as suas mãos; que é norma para si mesmo, sem necessidade de um legislador divino (…).

Da mesma maneira, a Igreja e a cultura contemporânea falam ambas de história, mas (…) o cristianismo vê na história a evolução de um desígnio providencial de Deus, através da liberdade livre e inteligente do ser humano; os acontecimentos são, é verdade, mutáveis e contingentes, mas há realidades e verdades imutáveis que dão um sentido de continuidade e de crescimento à história humana. Em vez disso, para o pensamento moderno a história é puro fluir, um devir sem outro significado a não ser aquele que o ser humano pode e quer dar-lhe: não existe nenhuma verdade absoluta, aliás o próprio ser humano é relativo (…).

E ainda: quer a Igreja quer a cultura moderna insistem na importância central da razão. Mas, para o ser humano moderno, a razão é já uma “deusa”: faz a verdade e é o critério único e inapelável, ao ponto de considerar falso ou inexistente tudo aquilo que supera a nossa capacidade lógica e não é demonstrável cientificamente. Segundo a conceção cristã, em contrapartida, a razão é capaz de Deus, está aberta à verdade transcendente; aliás, é precisamente o fim transcendente que dá sentido e unidade ao conhecimento humano, às descobertas da ciências e às aquisições da técnica. A fé, por isso, não só não mortifica a inteligência, mas purifica-a, orienta-a, ajuda-a a divisar a verdade mesmo para além dos condicionamentos “mundanos”.

Por fim, quer a Igreja quer a cultura moderna falam de liberdade, mas dela têm uma conceção diferente. Para a cultura dominante, ser livre equivale a poder fazer tudo aquilo que se quer (…) com o único limite de não impedir aos outros o exercício da mesma liberdade. Segundo a visão cristã, antes, “liberdade” é sinónimo de responsabilidade nas escolhas que o ser humano faz (…), adequando-se voluntariamente à norma ética, respeitando os direitos e as liberdades dos outros na persecução do bem comum.

2. Outras dificuldades provinham do interior da própria Igreja e da parte dos cristãos. Antes de mais, pesava o facto de, durante séculos, a mensagem evangélica tinha sido identificada com a cultura ocidental (…). Isto impediu, durante muito tempo, a Igreja de compreender que alguns valores da cultura moderna – como a tolerância, a liberdade de pensamento e de imprensa, a liberdade de consciência, a igualdade de todas as religiões perante o Estado – não estavam em contraste, mas em plena harmonia com o Evangelho.

Ao mesmo tempo, pesava a atitude de desconfiança que a Igreja e os cristãos alimentaram instintivamente em relação ao progresso científico moderno. É verdade que a denominada “cultura laica” procurou muitas vezes dar às novas hipóteses científicas um significado materialista e ateu (… pense-se no evolucionismo darwiniano…), mas isso não justifica o fechamento preconceituoso da Igreja contra toda a forma de aproximação nova à realidade e ao pensamento (…).

Querendo, por isso, dar um juízo de conjunto sobre as dificuldades culturais que o Concílio Vaticano II teve de enfrentar nos seus inícios, devemos dizer que elas provinham não apenas do exterior, dos desafios de uma cultura sem Deus, mas também do interior, das demoras e dos medos da própria Igreja. Apesar disso, o Concílio (…) teve a luz e a força para empreender a corajosa atualização, desejada por João XXIII, para um renovado anúncio do Evangelho ao mundo de hoje (…).

A opção foi clara e inequívoca. O Concílio amadureceu a convicção de que o encontro entre o Evangelho e a cultura moderna não só é possível, mas é necessária, aliás, é até vantajoso quer para o mundo quer para a Igreja. Para o realizar não há caminho melhor do que o “diálogo” e a “inculturação”. (…) Trata-se – especifica ulteriormente o Concílio – de adquirir uma mentalidade e atitude novas. De facto, para dialogar é preciso que nos coloquemos na situação de quem dá, mas também de quem escuta e recebe com humildade os «vários elementos de verdade» que se encontram também fora da Igreja católica (…), e até junto daqueles não-crentes «que têm o culto de altos valores humanos, apesar de não reconhecerem ainda a sua fonte».

O fruto maduro do diálogo é a “inculturação”, ou seja, um processo, um itinerário caracterizado por dois momentos, entre eles inseparáveis: a complementaridade e a crítica. Trata-se de aprender a viver unidos, respeitando-nos como diferentes. Com efeito, partir de quanto nos une não significa ignorar o que divide (…). A “inculturação”, portanto, não consiste apenas no esforço de traduzir a mensagem cristã numa nova linguagem mais compreensível para os seres humanos de hoje, mas sobretudo no esforço de ajudar cada cultura a desenvolver as suas potencialidades, abrindo-a a um humanismo integral. A fé não é feita para extinguir, mas para alimentar as justas expetativas dos seres humanas e abri-las para horizontes de justiça verdadeira e de fraternidade universal. É por isso que a própria cultura moderna só pode extrair utilidade do confronto com a fé moderna.

Bartolomeo Sorge
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins:
Imagem: cristianoalessandro/Bigstock.com