Sex. Abr 19th, 2024

À VOLTA DO NOVO TESTAMENTO

QUMRAN 10 | COMENTÁRIOS BÍBLICOS

Pe. Júlio Franclim do Couto e Pacheco

Leia aqui Qumran 10 | Comentários bíblicos

I N T R O D U Ç Ã O

A descoberta dos primeiros manuscritos na zona de Qumran, junto ao Mar Morto, foi feita por casualidade em 1946-1947, quando três pastores beduínos, nómadas do deserto, estavam por ali com o rebanho de cabras, e um deles, ao procurar algumas cabras, vê duas aberturas na rocha. Atirando pedras pela abertura da rocha, ouve barulho de cerâmica a quebrar. Dois dias após entrou na caverna, encontrando uma série de jarros, contendo manuscritos.

     Ao todos foram encontradas e examinadas onze grutas com manuscritos. Já se conhecia um primeiro manuscrito encontrado no Cairo, Egipto, recuperado em 1897 numa guenizah, local em uma sinagoga onde se guardam cópias de textos sagrados em desuso, conhecido como Documento de Damasco, escrito por volta de 10 a.C.. A descoberta posterior de manuscritos em Qumran veio trazer luz para a compreensão deste manuscrito.

                Os manuscritos bíblicos encontrados em Qumran abrangem toda a Bíblia hebraica, excepto o livro de Ester e são aproximadamente mil anos mais antigos do que o mais velho códice. Um dos primeiros manuscritos retirados das grutas próximas ao sítio de Qumran foi a Regra da Comunidade. Este documento de onze colunas apresenta poucas lacunas e está em bom estado de conservação. Na gruta 4 foram descobertos também outros manuscritos fragmentários da mesma regra.

                A comunidade do Mar Morto (ou Qumran) foi estabelecida ali no século II a.C., que sobreviveu por cerca de dois séculos ou mais.

                A maioria dos manuscritos está em pergaminho, o restante em papiro. Além dos manuscritos hebraicos, foram encontrados gregos e aramaicos. Os gregos são fragmentos de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Há fragmentos dos Targumim do Levítico e Job. Os manuscritos concordam com o texto massorético e, indicam a existência de protomassoréticos entre os séculos I-III a.C..

O trabalho seguinte foi escavar e identificar algumas ruínas que se encontravam na zona. Identificam uma construção rectangular de 37 metros de comprimento por 30 metros de largura à qual se ligam outros edifícios e um aqueduto que serve para recolher as águas do Wadi Qumran no Inverno.

A cerâmica encontrada é idêntica à de 1Q: isto relaciona os manuscritos com o grupo que vivia em Qumran. O cemitério, com mais de mil túmulos, rigorosamente organizado, também é investigado e nove esqueletos são enviados a Paris para exames técnicos.

As moedas encontradas permitem a datação do assentamento humano de Qumran. As dez moedas identificadas inicialmente vão da época de Herodes Magno (37-4 a.C.) à segunda guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.).

Em algumas grutas desta região são encontrados importantes documentos em hebraico, aramaico, grego e latim relacionados, em sua maioria, com a segunda guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.). Fica estabelecido que Murabba’at servia de refúgio aos soldados de Simão bar Kokbah, líder da rebelião, de quem são recuperadas até cartas assinadas.

Em Khirbet Qumran os arqueólogos identificam um conjunto de construções bastante interessante: oficinas, olaria, despensas, refeitório, cisternas, um «scriptorium», etc. Nenhum fragmento de manuscrito é encontrado nas construções, mas apenas alguns óstraca. E a sua grafia é a mesma dos manuscritos encontrados nas grutas. Também são recolhidas cerâmicas, moedas e outros objectos. O curioso é que o edifício não tem dormitórios. Ou se dormia em tendas ou nas grutas das redondezas. O estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul de Qumran, também é explorado. Ali os essénios manufacturavam a palmeira, juncos, sal, betume e cereais.

Os Manuscritos

No total, são recuperados, em 11 grutas de Qumran, 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos de mais de 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos em hebraico, aramaico e grego, cerca de 225 manuscritos são cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que vive em Qumran.

Todos os manuscritos são anteriores ao ano 68 d.C., quando Qumran é destruído. Os mais antigos são anteriores à instalação da comunidade que vive em Qumran e remontam ao século III a.C.

Regras da Comunidade

De extrema importância são os livros que trazem as normas de constituição e actividades da comunidade de Qumran.

A Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em hebraico, Serek hayahad (1QS), é o principal livro da comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e 125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 100-75 a.C.

Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos de outras 11 cópias es­tão entre os textos de 4Q e 5Q.

A Regra da Congregação, em hebraico, Serek ha’edat (1Q Sa), também dito Preceito do Messianismo e a Colecção de Bênçãos (1Q Sb) são dois anexos à Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a segunda pode ser datada por volta de 100 a.C.. A Regra da Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Colecção de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os membros da comunidade.

Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH), são cânticos de acção de graças ou hinos de louvor, parecidos com o Magnificat e o Benedictus de Lucas. Inspiram-se principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50 d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.

A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah, também conhecida como «A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas», compreende uma espécie de compêndio da ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que precederia a era da salvação. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C., enquanto o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste livro.

O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num depósito de rolos velhos (genizah) de uma antiga sinagoga do Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc. XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente compôs a obra. Mas acontece que fragmentos de nove cópias do Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran: sem dúvida é uma obra criada na comunidade essénia.

O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só aparece em Junho de 1967, durante a «Guerra dos Seis Dias», quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da parte árabe de Jerusalém, a quem os ta’amireh o vendera. É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronómio, o autor apresenta sua mensagem como fruto de revelação divina directa. O Rolo do Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro nas grutas 4Q e 11Q.

Estes rolos, de idades diferentes, cuidadosamente guardados em vasilhas da mesma época, não são peças abandonadas por acaso, mas um arquivo ou biblioteca escondida num momento de perigo. Nenhum documento é posterior aos começos do século I a.C. e alguns deles podem ser mais antigos.

Manuscritos Bíblicos

São recuperados manuscritos e fragmentos de quase todos os livros bíblicos judaicos, pois só falta Ester. O Pentateuco está muito bem representado em Qumran, pois há 15 manuscritos fragmentados do Génesis, 15 do Êxodo, 9 do Levítico, 6 de Números e 25 do Deuteronómio. São 70 manuscritos. Estes manuscritos ligam-se a três tradições textuais:

  1. a) à do texto massorético (TM)
  2. b) à do original hebraico a partir do qual é traduzida a LXX
  3. c) à do Pentateuco samaritano. O Pentateuco samaritano, pertencente à comunidade separada de Samaria, começa a ter sua história independente no final do séc. II a.C.. Os arqueólogos recuperam apenas fragmentos de 2 manuscritos de Josué, 3 de Juízes, 3 de Samuel e 4 de Reis. O grande interesse desses manuscritos para os estudiosos é que eles estão bem mais próximos do texto hebraico usado para a tradução da LXX do que do texto massorético.

Dos profetas são encontrados 18 manuscritos: 2 de Isaías – um quase completo (1QIsa) e outro com uma parte apenas (1Q Isb) – 4 de Jeremias, 6 de Ezequiel e 8 dos doze profetas menores. Os textos de Isaías são próximos ao TM, assim como os de Ezequiel e dos profetas menores, mas um manuscrito de Jeremias, 1Q Jrb, traz o mesmo texto da LXX. E isso é importante, pois o Jeremias da LXX é bem mais curto do que o do TM. Este é resultado de uma ampliação posterior, enquanto o que serve de base para a LXX é mais sóbrio. 1Q Isa é um rolo quase completo de Isaías, datando da primeira metade do séc. I a.C. 1Q Isb está mal conservado e contém apenas Is 38-66 e trechos de outros capítulos. É da última metade do séc. I a.C.

Quanto à última parte da Bíblia Hebraica, os Escritos, são recuperados em Qumran restos de cerca de 66 manuscritos. Os Salmos estão bem representados com 30 manuscritos, Daniel está em 8 e assim por diante. Na gruta 4 são recuperados fragmentos do original aramaico de Tobias, até então perdido, e textos muito próximos à época de composição dos originais como 4Q Ecla e 4Q Dna, respectivamente, cerca de cem e cinquenta anos após a escrita dos livros do Eclesiastes e de Daniel. Ester não é encontrado. Como esse livro é muito bem aceite pelos Macabeus, isto deve ter provocado sua rejeição pela comunidade de Qumran, inimiga daqueles governantes.

No conjunto, são cerca de 225 manuscritos ou fragmentos de livros bíblicos. Sua importância para a história do texto do AT é grande, já que testemunham as várias tradições existentes antes da unificação feita pelos rabinos de Jâmnia nos anos 90 da era cristã.

Livros Apócrifos

Outra área bastante interessante dos manuscritos de Qumran é a dos livros apócrifos.

Na gruta 1 são encontradas 22 colunas de um Génesis Apócrifo (1Q apGn), em aramaico, que narra a história de Gn 5,28-15,4, isto é, de Lamec a Abraão, com embelezamentos midrashicos. Pode ser datado entre o II e o I séculos a.C.

Vários fragmentos da gruta 1 testemunham a existência dum Livro de Noé. Na gruta 4 há fragmentos de 5 manuscritos dum Testamento de Amram (Amram é neto de Levi, segundo a Bíblia), sete fragmentos dum Samuel Apócrifo (4Q 160) etc.

Comentários Bíblicos

Os comentários bíblicos de Qumran são do género pesher, palavra hebraica que quer dizer «explicação», «significado». O método pesher consiste em comentar o texto bíblico versículo por versículo, procurando aplicá-lo às circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos bíblicos, especialmente os proféticos, estivessem falando directamente da realidade atual. Os livros resultantes são conhecidos como pesharim, «comentários». Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o comentarista diz: «A explicação (pesher) disto diz respeito a…».

Estes livros são classificados como 1Q pHab, 1Q pMq, 4Q pOs etc, respectivamente, Comentário (= pesher) de Habacuc, Comentário de Miqueias, Comentário de Oseias e assim por diante. Estão identificados cerca de uma dúzia destes comentários entre os manuscritos de Qumran.

Os pesharim, além de exemplificarem um método exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos cristãos, são importantes igualmente como testemunhos históricos da organização e vicissitudes da comunidade. O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab, Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do séc. I a.C., por suas constantes referências à história da comunidade.

Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran é o targum. Targum significa «tradução» e indica as traduções aramaicas dos livros bíblicos (= targumim) que se fazem nas sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal, mas uma paráfrase explicativa e actualizada do texto hebraico. É óptimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico. Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um Targum de Job. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo do final do séc. II a.C..

Outro tipo de exegese é o que os editores dos manuscritos chamam Florilégio: consiste em agrupar vários trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que ese completem e sejam explicados. O fragmento 4Q 174, por exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.