Ter. Set 17th, 2024

Aveirenses notáveis

Eduardo Valente da Fonseca – O poeta e jornalista que “fintou” a censura

Cardoso Ferreira (textos)


No ano de 1928, nasceu na cidade de Aveiro Eduardo Valente da Fonseca que se viria a distinguir como o jornalista que “fintou” a censura ao publicar horóscopos com críticas ao regime do Estado Novo.

Como escritor, Eduardo Valente da Fonseca (Aveiro – 1928 / 2003) colaborou nos suplementos literários de diversos jornais e revistas, nomeadamente “O Comércio do Porto”, “Jornal de Notícias”, “Vértice” e “Jornal de Letras”.

Das muitas obras que escreveu, destacam-se, por ordem cronológica de publicação: “Cítara: colectânea de poesia” (1951), “Os poemas” (1952), “A cidade e os homens e outros poemas” (1956), “Tempo dos manequins: poemas” (1957), “Mitologia do nosso cotidiano: poemas” (1959), “Três pintores portugueses, três concepções da nossa realidade” (1961), “Os Criptogâmicos” (1973), “Cães, Pedras, Paus e Gazelas” (1996), “O Horóscopo de Delfos – Um Caso Singular no Jornalismo Português” (1998) e “71 Poemas” (2001), com seleção dos poemas da responsabilidade de J. M. da Silva Couto.

O escritor está incluído na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, de Maria Alberta Menéres e E.M. de Melo e Castro.

No livro “A Cidade e os homens e outros poemas”, o autor homenageia algumas terras e regiões portuguesas, entre as quais as cidades de Aveiro e do Porto (sua terra natal e a cidade onde então residia).

Em 1966, Eduardo Valente da Fonseca publicou, numa edição semiclandestina, aquele que é considerado como o primeiro poema de homenagem a Catarina Eufémia.

Eduardo Valente da Fonseca também foi tradutor de livros, entre os quais “Rum”, da autoria de Blaise Cendrars.

Jornalista de “República”

Depois de uma fase inicial de colaboração com os jornais da cidade do Porto, com destaque para “O Comércio do Porto” e para o “Jornal de Notícias”, Eduardo Valente da Fonseca rumou a Lisboa. Na capital, foi jornalista e repórter do jornal “Republica”, para o qual entrou no ano de 1965 e onde se manteve até ao seu encerramento, ocorrido em 1976, após um conflito entre socialistas e comunistas pelo domínio do jornal no período que se seguiu à revolução de 25 de Abril de 1974.

Foi precisamente no “República” que Eduardo Valente da Fonseca criou, no ano de 1973, a rúbrica “Horóscopos de Delfos”, com a qual conseguiu “fintar” a censura, publicando críticas contundentes ao regime do Estado Novo.

Nesse período final do antigo regime eram muito poucos os textos que não tinham de receber o visto prévio da censura. Nesse nicho incluíam-se os signos, o tempo, as palavras cruzadas e os textos do então presidente da República, Américo Thomás.

Tal como outros jornalistas, então conotados com a oposição, também Eduardo Valente da Fonseca tentou encontrar uma forma de contornar o “lápis azul” da censura, descobrindo que poderia publicar crítica política e social numa rúbrica de astrologia, inserida no suplemento dominical do jornal. E assim surgiram os “Horóscopos de Delfos” que conseguiram enganar a censura até poucas semanas antes do 25 de Abril de 1974.

O autor da rubrica “Horóscopos de Delfos” teve o apoio de Raúl Rego, que então dirigia o “República”, e de outros jornalistas e colaboradores do jornal, entre os quais, José Magalhães Godinho, Álvaro Guerra, Álvaro Belo Marques, Victor Direito, Mário Mesquita, Jaime Gama, Afonso Praça, Fernando Cascais, Fernando Assis Pacheco, Figueiredo Filipe, Carlos Albino, José Alcambar, Miguel Serrano, José Manuel Barroso, Antónia de Sousa, Helena Marques, Gonçalves André, Pedro Foyos, entre outros.

 

Letrista e colaborador de cinema

Eduardo Valente da Fonseca também foi autor de algumas letras de canções interpretadas por artistas de renome nacional. Um dos seus poemas integrou o disco “Fado Nosso”, de João Braga, editado em 2009. Nessa obra discográfica surgem também textos de Manuel Alegre, Luís de Camões, Vinicius de Moraes, David Mourão-Ferreira, entre outros.

 

Também o seu poema “Canto do Ceifeiro”, musicado por Francisco Fernandes, foi incluído no disco “Cancões da Cidade Nova “, de Francisco Fanhais, gravado em 1970, e que tinha poemas de, entre outros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuel Alegre, Garcia Lorca e António Aleixo.

Juntamente com Monique Rutler, Eduardo Valente da Fonseca foi responsável pelos diálogos do filme, um misto de documentário e de ficção, “Velhos São os Trapos”, estreado em 1980, e rodado no ano anterior, com realização de Monique Rutler.

Um depoimento sobre Eduardo Valente da Fonseca

‘Poeta, escritor e jornalista de Abril, Eduardo conversava com a relva molhada, entrevistava ilustres figuras da sociedade portuguesa e gatos peludos e até enamorados. Lembro-o de figura delgada segurando um saco de plástico com os seus livros encapados.

Irónico, divertido e fugitivo de tudo o que silencia a liberdade, lutou pelos cravos com este horóscopo que teve a oportunidade de escrever no jornal “República”. Recorde-se que os signos, o tempo, as palavras cruzadas e os textos de Américo Thomás eram as únicas letras que não eram confiscadas pelo lápis azul. E nesta fenda, Eduardo deixou recados que ainda hoje deixam o repto de fazermos mais e melhor, de fazermos «dieta de conversas patetas»”.

Texto de Mariana Jones em http://www.blogclubedeleitores.com/2010/05/o-horoscopo-de-delfos-eduardo-valente.html


(A rubrica «Aveirenses notáveis» é promovida em parceria com o jornal diocesano Correio do Vouga)