Mons. João Gonçalves Gaspar*
Ao ter conhecimento de notas e comentários sobre as atitudes do papa Pio XII perante as atrocidades nazi-fascistas durante a segunda guerra mundial (1939-1945), sinto que não posso calar algo do que conheci e vivi em cima dos acontecimentos, durante os meus anos jovens. Tais recordações pessoais, naturalmente de menor importância, serão completadas com outros valiosos testemunhos e com outras relevantes informações posteriores.
Agora que a Santa Sé, no dia 02 de Março de 2020, abriu a consulta dos documentos do pontificado de Pio XII (1939-1958) aos investigadores, espera-se que esta preciosa fonte de informação nos mostre um papa «em toda a sua grandiosidade, como defensor da humanidade e como autêntico pastor universal», sendo «um corajoso diplomata» – segundo afirmou o arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário do Vaticano para as Relações com os Estados, que também assinalou: – «Pio XII, como papa, demonstrou uma caridade ilimitada, nem sempre compreendida e nem mesmo partilhada dentro dos muros vaticanos. Dos seus documentos evidenciam-se os esforços feitos para tentar responder aos pedidos de ajuda para a salvação dos perseguidos e dos necessitados em perigo de vida. Certamente poderemos constatar também o ódio do Nazismo contra a Igreja Católica e contra o próprio papa».
1 – Mons.Eugénio Maria Pacelli,
secretário de Estado da Santa Sé
Começo por fazer uma viagem ao passado. Mons. Eugénio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, pertencente a uma família da nobreza italiana, nasceu na cidade de Roma em 02 de março de 1876 e faleceu em Castelgandolfo no dia 09 de outubro de 1958. Foi ordenado bispo em 13 de maio de 1917 pelo papa Bento XV, à mesma hora em que a Virgem Maria se revelava na Cova da Iria (Fátima) a três crianças. Logo nomeado pelo Vaticano como núncio apostólico na Baviera, sentiu a necessidade de intervir, através do Governo alemão, no sentido de que os judeus residentes na Palestina fossem protegidos frente ao Império Otomano da Turquia, libertando-os de um massacre projetado. Ainda no mesmo ano, solicitou às instâncias da Santa Sé para que Nachum Sokolov, então representante da Organização Sionista Mundial, fosse recebido pessoalmente pelo papa Bento XV, com o fim de dialogar com Sua Santidade sobre a pátria judaica. Mais tarde, em 1926, teve ocasião de animar os católicos alemães a apoiarem o Comité Pró-Palestina, que apadrinhava a emigração e a fixação dos israelitas na Terra Santa. Entretanto, tendo falecido o atrás mencionado Bento XV, em 06 de setembro de 1922 foi escolhido para lhe suceder Mons. Achille Ratti, que tomou o nome de Pio XI.
No desenrolar dos acontecimentos na Europa, Adolf Hitler tornar-se-ia o senhor absoluto da Alemanha a partir de 30 de março de 1933, credenciado por eleições democráticas. Poucos meses decorridos, precisamente em julho seguinte, a Santa Sé assinou uma Concordata com a Alemanha que, por sua parte, também garantia o reconhecimento diplomático do regime nazi pelo Vaticano – o que então era muito vantajoso para Hitler no plano internacional. Por tal razão, para lá das suas intenções, este instrumento deu ao ditador um precioso crédito; aumentou o seu prestígio dentro e fora do país e impediu os bispos católicos de abertamente assumirem posições contra as ingerências do Estado nos assuntos da Igreja ou criticarem publicamente as decisões políticas contra os direitos humanos. Hoje pergunta-se como foi possível que tantos responsáveis das Igrejas Cristãs, de qualquer confissão, pudessem ter sido ludibriados, deixando-se convencer pela pretensa bondade das ideias nacionalistas e racistas do ‘Führer’.
Perante a política alemã em crescente despotismo, o papa Pio XI, apesar do referido acordo bilateral com a Alemanha, não se manteria silencioso. Logo em 28 de abril de 1935, o cardeal Pacelli, secretário de Estado da Santa Sé desde fevereiro de 1930, dirigindo-se a cerca de duzentos e cinquenta mil peregrinos no santuário mariano de Lourdes, declarava: – «Estes [nazis] ideólogos, de facto, são apenas miseráveis plagiadores, que levantam antigos erros sob novas cores. Pouco importa se o fazem sob a bandeira da revolução social… ou se estão possuídos pela superstição da raça e do sangue». Pacelli foi outrossim o inspirador do final da encíclica de Pio XI, de 14 de março de 1937, Mit brennender Sorge (“Com profunda tristeza”). A dita encíclica, a primeira escrita em alemão, foi distribuída secretamente aos bispos e sacerdotes e lida em todas as igrejas do ‘III Reich’ no domingo de Ramos (21 de março).
O documento condenou sem paliativos a doutrina totalitária e racista do Nazismo germânico, denunciou a opressão exercida sobre a Igreja, proclamou não ser cristão quem tivesse como norma suprema uma raça, um povo, um Estado ou os seus representantes, e rejeitou a visão e a filosofia panteístas daqueles que pugnavam por um deus nacional ou por uma religião nacionalista. «Quem quer que identifique, numa confusão panteísta, Deus e universo, baixando Deus às dimensões do mundo, ou elevando o mundo às de Deus, não pertence àqueles que acreditam em Deus» – lia-se no documento. O sumo-pontífice, no aspeto ético, ainda refutou o Nazismo por fomentar o abandono das normas morais objetivas e advertiu: – «As leis humanas, que estiverem em oposição insolúvel com o direito natural, sofrem de um vício congénito que se não pode curar nem com opressões nem com a ostentação da força externa». Como resposta, o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Berlim, em face da frontalidade da encíclica papal, não ficou calado e definiu-a como «uma declaração de guerra… pois chama todos os cidadãos católicos a insurgirem-se contra a autoridade do ‘III Reich’». Pio XII, aludindo mais tarde a este documento do seu antecessor, diria que «ninguém podia acusar a Igreja de não ter denunciado e indicado, na devida altura, o verdadeiro carácter do movimento nacional-socialista e o perigo em que ele punha a civilização cristã».
Confiado na ‘política de apaziguamento’ das potências ocidentais para evitarem a guerra, Hitler foi desenvolvendo a sua ação sem travar batalhas. Decretou a obrigatoriedade do serviço militar em 16 de março de 1935; desenvolveu a marinha de guerra com o acordo da Inglaterra em 18 de junho do mesmo ano; remilitarizou a Renânia em 07 de março de 1936; impôs à Áustria, em 12 de março de 1938, um pacto em que esta, embora auto-reconhecesse a sua independência, se proclamou ‘Estado Alemão’, seguindo-se, logo no dia imediato, a presença das tropas germânicas; anexou a região dos Sudetas, a que a Checoslováquia teve de se submeter no acordo de Munique, em 30 de setembro de 1938, assinado pela Alemanha, pela Itália, pela Inglaterra e pela França; enviou tropas para esse país a partir de 14 de março de 1939, a pedido do respetivo presidente, para sufocar possíveis tentativas de independência da Eslováquia; finalmente, em 23 de março do mesmo ano, anexou o território de Memel, arrancando-o à Lituânia.
De facto, durante o ano de 1938, a situação na Alemanha tornava-se cada vez mais complicada; em face da sua política, começara-se a perceber que Hitler caminhava para uma guerra europeia e mundial, com o objetivo de demonstrar a superioridade do seu país, da sua política ditatorial e das suas ideias anti-semitas. Então, ele tinha de encontrar bodes expiatórios; os mais atingidos seriam os indefesos judeus, os excluídos ciganos e as pessoas influentes na sociedade e dele discordantes. Consequentemente, na noite de 10 para 11 de novembro, a Alemanha viu-se sacudida por uma onda de terror e de morte. Foi o princípio do fim. Pacíficos israelitas foram subitamente expulsos das suas moradias e torturados, as suas cento e noventa e uma sinagogas incendiadas e as suas oitocentas e quinze lojas comerciais destruídas e expropriadas; além disso, foram destruídas pelo fogo cento e setenta e uma casas, assassinados trinta e seis judeus e cerca de vinte mil enviados para campos de concentração. O pânico apoderara-se de todos os alemães; mas ninguém se atrevia a protestar publicamente. Em consonância com semelhante política, a perseguição foi até à determinação de os atingidos serem relegados de diversas profissões, incluindo as do ensino.
Quando, também no mesmo ano, foram sancionadas na Itália, aliada da Alemanha, as primeiras leis contra os judeus, o papa Pio XI logo as condenou e, a seguir, agiu em conformidade. No mês de setembro de 1938, perante peregrinos belgas, pronunciou uma frase que teve grande repercussão: – «O anti-semitismo é um movimento no qual nós, cristãos, não podemos ter qualquer participação. […] Espiritualmente, somos semitas». E, em janeiro do ano seguinte, pediu aos embaixadores credenciados junto do Vaticano que conseguissem vistos para os seus países em favor dos judeus alemães e italianos.
Antes de falecer, o mesmo papa ainda chamou um bispo alemão a Roma, a fim de preparar um refúgio para os perseguidos junto da basílica de S. Paulo. Como é manifesto, o cardeal Pacelli estava envolvido nestas iniciativas. De facto, o general Ludendorf haveria de testemunhar: – «Pacelli foi o animador que esteve por trás de todas as actividades anti-germânicas da política da Santa Sé».
2 – Papa Pio XII
Na segunda guerra mundial
Tendo ocorrido a morte de Pio XI em 10 de fevereiro de 1939, procedeu-se à escolha do sucessor, que seria o cardeal Eugénio Maria Pacelli; eleito em 02 de março seguinte, adotou o nome de Pio XII. A propósito desta opção, pôde ler-se então no jornal nazi Berliner Morgenpost: – «A eleição do cardeal Pacelli não é aceite como favorável à Alemanha, porque ele sempre se opôs ao Nazismo e praticamente determinou a política do Vaticano, orientada pelo seu antecessor». Acrescente-se que futuramente, na Alemanha e nos territórios por ela ocupados, era aprisionado quem fosse denunciado como ouvinte da Rádio do Vaticano.
Perante as pressões e as perseguições a que os hebreus estavam a ser expostos, o novo pontífice convidou-os a acolherem-se no Vaticano e ofereceu-lhes ajuda para emigrarem; muitos aceitaram. Investigando testemunhos e documentos, reconhece-se claramente que a influência de Pio XII, «em toda a Europa durante a guerra», fora extraordinária a ponto de mandar e aconselhar os arcebispos e bispos das Dioceses, os religiosos e religiosas dos conventos e os responsáveis das instituições da Igreja Católica que socorressem os perseguidos, apesar dos perigos a que se expunham. Uma outra prova da ação do pontífice foi a sua intervenção especial junto dos núncios, conforme aconteceu com o da Hungria, Mons. Ângelo Rotta, e com o da Bulgária, mons. Ângelo Roncalli (futuro S. João XXIII), que tiveram um papel decisivo em salvar a vida de alguns milhares de judeus. Também é elucidativo o caso ocorrido no outono de 1941; o papa, numa audiência a refugiados judeus, manifestou a sua estima pelo povo israelita, dizendo sofrer com a sorte dos prisioneiros, «que têm a mesma dignidade de qualquer outro ser humano».
Mas não só. Na sequência de Pio XI, também interveio persistentemente junto de embaixadores e cônsules de outros países para concederem vistos em seu favor. Atendendo a este pedido, lembro aqui a benemérita acção do dr. Aristides de Sousa Mendes que, sendo cônsul de Portugal em Bordéus de 1938 a 1940, se distinguiu no auxílio a foragidos da guerra e do ódio nazi. O pontífice, sentindo-se limitado em acções públicas, iria fazendo o que lhe parecia ou o que podia através do sigilo da diplomacia, da influência do seu prestígio, da hospitalidade aos perseguidos, da ação caritativa em favor das vítimas da guerra. O aparente silêncio escondeu uma contínua atividade discreta junto das nunciaturas, dos episcopados, das organizações eclesiais e das autoridades civis para diminuir ou mesmo para evitar as violências – o que se pode comprovar por documentos guardados em arquivos. A partir de agora, quanto será revelado do que está no Arquivo do Vaticano?!…
Pio XII não desaproveitaria o que estava ao seu alcance para impedir os confrontos bélicos, inclusive com apelos aos Estados e com discursos públicos. Neste sentido, em maio de 1939, dois meses após a sua eleição, lançou a ideia de uma conferência internacional entre os Governos de Roma, Paris, Londres, Berlim e Varsóvia – no que não seria ouvido.
Neste ambiente tão carregado e sombrio, o sumo-pontífice ainda mandou que se fizesse uma nova diligência; tinha a noção de que não podia esquivar-se ao seu dever inalienável de defensor do homem e da paz. Como diria em 02 de junho de 1945, num tom de reflexão sobre o passado: – «Debruçávamo-nos sobre essa paz, como quem se debruça à cabeceira de um moribundo, que um amor ardente se obstina a disputar às garras da morte, mesmo contra toda a esperança». Com efeito, no dia 31, apenas algumas horas antes do começo da luta armada, a Secretaria de Estado da Santa Sé enviou uma exortação telegráfica aos atrás referidos cinco Governos, nestes termos: – «O soberano pontífice não quer renunciar à esperança de que as negociações em curso possam fechar numa solução justa e pacífica, tal como o mundo inteiro a não deixa de implorar. Por consequência, Sua Santidade suplica, em nome de Deus, aos Governos da Alemanha e da Polónia que façam tudo o que lhes for possível para evitar qualquer incidente e se abstenham de tomar qualquer medida suscetível de agravar a situação atual. O papa implora nomeadamente aos Governos da Inglaterra, da França e da Itália, a fim de apoiarem este seu pedido».
Quando, em 01 de setembro de 1939, estalou a guerra com a invasão da Polónia, o papa ainda diligenciou por evitar que a Itália entrasse no conflito, de acordo com Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos da América do Norte; e, em 20 de outubro, na sua primeira encíclica, Summi Pontificatus, condenou alguns erros capitais, como o desrespeito da dignidade humana, a negação da igualdade do género humano e da sua necessária solidariedade, fosse qual fosse o povo a que se pertencesse, e anatematizou ainda a elevação do Estado ou da comunidade social, ocupando o lugar do próprio Criador, como fim último da vida humana e como árbitro supremo da ordem jurídica e moral.
Os esforços do sumo-pontífice, considerado então (mesmo pela imprensa livre) como um dos poucos baluartes da defesa da liberdade na Europa oprimida, iriam prosseguir durante os anos das hostilidades militares, tantas vezes correndo graves riscos. Contudo, Pio XII era realista; não queria pagar com o sangue dos outros uma razoável mas dura palavra que, no fundo, não lhe teria custado muito. «Quando o papa gostaria de gritar alto e forte, infelizmente são a dilação e o silêncio que muitas vezes se antepõem; quando gostaria de agir e ajudar claramente, são a paciência e a espera que se impõem» – escreveu ele em 20 de fevereiro de 1940, numa carta remetida aos bispos alemães. Mais tarde, diria o escritor francês François Mauriac que «o silêncio do papa e da hierarquia correspondia a uma assustadora exigência das circunstâncias, porque se tratava de evitar males maiores».
Tem interesse, neste momento, recordar que, quando o papa começou a ser incriminado de ser favorável aos nazis, estes, por seu turno, acusavam-no de tomar partido contrário. Assim, por exemplo, numa audiência concedida em 11 de março de 1940, o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joachim von Ribbentrop, falou-lhe da futilidade do alinhamento da Santa Sé com os inimigos do ‘Führer’. Pio XII escutou o ministro, educada e pacientemente. Em seguida, abriu uma pasta e leu uma lista das perseguições infligidas pelo ‘III Reich’ na Polónia, indicando com precisão as datas, os locais e os pormenores de cada crime. A audiência terminou aqui; a posição do papa ficara claramente definida.
Como testemunho pessoal, D’Arcy Osborne, que, de 1936 a 1947, foi ministro plenipotenciário da Grã-Bretanha junto da Santa Sé, escreveria no jornal londrino Times, na década de 1960: – «Longe de ser um gélido diplomata, Pio XII foi a personalidade mais calorosamente humana, gentil, generosa e compreensiva que tive a honra de conhecer no curso da minha longa existência. Sei que a sua natureza sensível era sempre pungentemente afetada pelos imensos sofrimentos causados pela guerra; e não tenho a menor dúvida em afirmar que ele estava pronto a dar com alegria a sua vida para salvar a humanidade das consequências do conflito, sem discriminar nem as nacionalidades nem as crenças religiosas dos beneficiados. Mas, na prática, que poderia ele fazer mais, além do que fez?»
3 – Pio XII
Na defesa dos judeus
As desumanas crueldades executadas pelos nazis nos campos de concentração apenas seriam claramente conhecidas após o termo das operações bélicas, quando os sobreviventes, ao serem libertados, puderam contar tudo o que viveram e sofreram e aquilo a que estavam sujeitos. O próprio projeto alemão de extermínio total dos judeus não era conhecido nem pelo Vaticano, nem pelas organizações judaicas, nem pelos ‘aliados’ ocidentais; o segredo é óbvio em tempo de guerra. Ainda em 30 de agosto de 1943, o secretário de Estado norte-americano referia: – «Não há provas suficientes para justificar uma declaração a respeito das execuções em câmaras de gás». O ‘Holocausto’ impôs-se à atenção do mundo, somente depois de haver terminado o conflito. Apesar da falta de informações fidedignas, Pio XII e os seus colaboradores fizeram contínuos esforços para salvar as pessoas ameaçadas de deportação e para minorar as condições dos campos, de que, apesar de tudo, iam surgindo suspeitas cada vez mais alarmantes.
Em certa ocasião durante a guerra, o pontífice escreveu um telegrama ao almirante Miklós Horthy, então governador nazi da Hungria, para que evitasse a deportação dos judeus; o governador acedeu… e – segundo se afirma – foram salvas cerca de oitenta mil vidas. Também se contam por vários os seus pedidos de asilo; desta forma, por sua intervenção o Governo do Brasil dispôs-se a aceitar até três mil ‘não-iranianos’; Rafael Trujillo, presidente da República Dominicana, daria guarida a oitocentos judeus, pelo menos; e outros países aceitaram colaborar na mesma obra humanitária, dizendo-se que o papa, por esta via, terá salvo aproximadamente onze mil judeus.
Todavia – conforme testemunhariam pessoas responsáveis que suportaram o ambiente – as declarações e os protestos públicos, se fossem feitos, não resultariam e até tornariam mais difícil as gestões secretas para salvar vidas e poderiam mesmo agravar a sorte das vítimas e multiplicar o seu número, como aconteceu na Holanda após a condenação formal sobre as deportações de judeus; tal protesto foi corajosamente assinado pelos bispos católicos e pelos responsáveis de quase todas as Igrejas Protestantes, em telegrama enviado a Seyss-Inquart, comissário local da Gestapo alemã. Aliás, o cardeal-primaz da Holanda, Mons. Johannes de Jong, logo desde o começo da ocupação alemã em 1940, reagira contra os crimes praticados pela polícia germânica no seu país, dando diretrizes que se leram publicamente nas igrejas, entre elas a proibição de os católicos participarem em organizações nazis. Estas medidas ajudaram o movimento clandestino da resistência e estimularam a que muitos sacerdotes e leigos apoiassem os judeus.
Dizia o citado documento dos hierarcas cristãos holandeses, referindo-se em concreto aos judeus: – «Os abaixo-assinados, profundamente magoados com as medidas de exceção tomadas contra os judeus e tendentes a excluí-los da vida comum da sociedade, souberam com horror a notícia das deportações maciças de famílias inteiras judias – homens, mulheres e crianças – para os territórios de Leste sob controle do ‘III Reich’. A dor que destroça dezenas de milhares de pessoas, a certeza de que tais medidas vão contra o profundo sentido moral do povo holandês e dos mandamentos de Deus, que prescrevem a justiça e a misericórdia, obrigam os chefes das comunidades cristãs a dirigir-vos um urgente apelo para evitar, quanto possível, a execução de tais medidas. Sobre os cristãos de origem judaica, a nossa petição torna-se mais insistente, porque as disposições precipitadas tendem a excluí-los da própria vida das nossas Igrejas».
Numa primeira resposta, houve a garantia de que os judeus-cristãos não seriam perturbados. Porém, como o seu sequestro continuava sem parar, as autoridades eclesiásticas de várias Igrejas Cristãs entenderam não se calar e prepararam uma carta pastoral conjunta, cuja publicação foi vetada pelo comissário do ‘III Reich’; o documento, sem qualquer referência à situação política vigente, continha apenas um convite à reflexão pessoal perante os acontecimentos vividos. Os responsáveis das Igrejas Protestantes retrocederam, mas os bispos católicos ignoraram as suas ordens, fazendo saber ao ocupante que não tinha o direito de se intrometer nos assuntos da Igreja Católica. A carta pastoral, em que se incluía o dito telegrama, foi publicitada nas liturgias dominicais de 26 de julho de 1942. Nela se lia, entre outras coisas: – «Queridos fiéis, antes de mais, suscitemos em nós mesmos um profundo sentimento de arrependimento e de humildade. Com efeito, não somos nós também responsáveis pelas catástrofes que nos afligem? Buscámos sempre e acima de tudo o Reino de Deus e a sua justiça? Praticámos sempre os nossos deveres de justiça e de caridade para com o próximo? Se refletirmos seriamente, reconheceremos que todos estamos em falta… Supliquemos a Deus que se digne conceder depressa ao mundo uma paz justa. Que fortaleça o Povo de Israel, nestes dias tão duramente provado, e o conduza à verdadeira redenção de Cristo».
A reação nazi à palavra profética da Igreja Católica na Holanda não atrasou mais do que uma semana… e foi brutal. No dia 02 de agosto, todos os judeus-católicos – cerca de trezentos, incluindo os que viviam em conventos – foram detidos e logo forçadamente encaminhados para os campos de morte no Leste, nomeadamente Auschwitz, Birkenau e Breslau; entre eles, contam-se as conhecidas religiosas carmelitas Edith e Rosa Stein, presas no convento de Echt e deportadas para Birknau, onde, com cerca de mil pessoas, foram assassinadas na câmara de gás em 09 de agosto. Todos eles foram as vítimas inocentes da vingança e do ódio que os alemães não puderam desferir sobre as autoridades eclesiásticas.
Foi nesta ocasião que o sumo-pontífice decidiu imediatamente suspender a condenação pública e formal do Nazismo alemão e do Fascismo italiano, que havia decidido publicar no jornal L’Osservatore Romano, tanto mais que soubera das desastrosas consequências, já programadas contra os católicos – e não só – no caso de ele não recuar. Hitler não só não atenderia os apelos, as reclamações e os protestos, mas iria tornar-se mais cruel com tais manifestações, aumentando a perseguição a judeus e não-judeus. As duas folhas, onde o próprio papa redigira o dito texto com as suas letras miudinhas, foram reduzidas a cinza no fogão da cozinha.
Mesmo assim, tomou declaradamente a defesa dos hebreus na mensagem do Natal de 1942, na qual criticou o racismo, a ponto de ser denunciado por Joseph Goebbels, ministro de Propaganda do Governo nazi; de facto, Pio XII, além de lembrar a crueldade da guerra e a violação das convenções internacionais que procuravam limitar os seus horrores, falou das «centenas de milhares de pessoas inocentes que, pelo único motivo de pertencerem a tal nação ou a tal raça, foram condenadas à morte, mediante o seu progressivo extermínio». Reportando-se a esta mensagem, Sir Martin Gilbert, historiador judeu inglês, numa entrevista de 02 de fevereiro de 2003, no programa “In Depth” do canal de televisão “C-Span”, disse abertamente que o papa «desempenhou também um papel importante […] no resgate das três quartas partes dos judeus de Roma».
O sumo-pontífice, refletindo sobre as atitudes dos responsáveis da Igreja nesta situação difícil e crítica, escreveria ao bispo de Berlim, em 27 de fevereiro de 1943: – «As declarações dos bispos arriscam-se a desencadear paixões; além disso, é preciso levar em conta outras circunstâncias, devidas talvez à duração e à psicologia da guerra. É este um dos motivos pelos quais nos impomos certas reservas nas nossas declarações; a experiência que fizemos em 1942, entregando alguns escritos pontifícios para se distribuírem aos fiéis, justificam a nossa atitude».
No rodar dos acontecimentos, no mês de outubro de 1943, a autoridade nazi de Roma emitiu a ordem de prisão imediata de todos os judeus residentes nesta cidade – 5.715 segundo o registo dos alemães – a fim de serem enviados para o campo de concentração de Mauthausen. O papa interveio direta e rapidamente, quer recolhendo milhares de judeus no Vaticano e em Castelgandolfo, quer mandando aos superiores e às superioras dos mosteiros e dos conventos que, suspensas as suas constituições, escondessem sem demora os homens e as mulheres perseguidos; o mesmo aconteceu quanto a igrejas e santuários. Desta forma, salvaram-se 4.715 judeus. Muitos dos que não tinham conseguido ou não quiseram asilar-se foram deportados para Auschwitz – e mais não foram devido à pronta intervenção do secretário de Estado de Sua Santidade, cardeal Luigi Maglione, junto do embaixador alemão no Vaticano, Ernst von Weizsacker, a quem pediu: – «Tente salvar os inocentes que sofrem por pertencer a uma raça determinada». Ernst von Weizsäcker, com conhecimento de causa, anotou: – «Um ‘protesto flamejante’ pelo papa não só não teria sucesso para deter a máquina da destruição, mas poderia ter causado uma grande quantidade de danos adicionais aos milhares de judeus, escondidos no Vaticano e nos conventos, aos oriundos de casamentos mistos (entre judeus e cristãos), à Igreja Católica, à integridade territorial da cidade do Vaticano e – por último e não menor – aos milhões de católicos de toda a Europa ocupada pela Alemanha».
4 – Gratidão dos judeus
Cinco meses depois de as tropas aliadas terem entrado em Roma, libertando a cidade das forças nazi-fascistas, um grupo de setenta israelitas, no dia 29 de novembro de 1944, foi ao Vaticano, com o único objetivo de agradecer cordialmente a Pio XII as suas intervenções durante a guerra, em seu favor. Foi um ato que se definiu como de inteira justiça a alguém que muito continuava a fazer pela dignidade humana.
A guerra na Europa terminou em 07 de maio de 1945, com a derrota definitiva e a rendição incondicional da Alemanha, já depois do suicídio de Adolph Hitler em 30 de abril anterior. Tendo consciência do apoio humanitário, inteligente e eficaz que lhe fora dado por Pio XII e pelos católicos, o povo judeu manifestar-se-ia penhorado para com o papa.
O historiador e professor judeu Pinchas Lapide, que exerceu as funções de cônsul israelita em Milão e de director do Serviço de Imprensa do Governo do seu país, falecido em 1997, foi um dos investigadores que estudaram a atitude de Pio XII referente aos judeus, durante a segunda guerra mundial. Quando, em fevereiro de 1963, se desencadeou um ataque violento e ofensivo da memória de Pio XII, considerando que ele nada fizera para evitar o genocídio do povo israelita e apresentando-o como cúmplice de Hitler e um dos maiores responsáveis pelo extermínio dos judeus, com base na publicação e representação em Berlim da peça teatral, escrita pelo protestante e comunista Rolf Hochhuth, Der Stellvertreter (O Vigário), aquele professor saiu em defesa do sumo-pontífice com o livro ‘Rom und die Juden’. Por seu turno, também o general Ion Mihai Pacepa, ex-conselheiro do presidente da União Soviética, Nicolae Ceausescu, ex-responsável dos serviços secretos romenos e desertor da KGB, afirmou com conhecimento pessoal que Hochhuth manipulou e falsificou documentos, obedecendo a um ‘complot’ secreto para desacreditar a Santa Sé.
Em 1967, no seu livro Three Popes and Jews, Lapide calculou que Pio XII e a Igreja Católica salvaram, com as suas intervenções, não poucas centenas de milhares de vidas, e escreveu: – «Em um tempo em que a força armada dominava de forma indiscriminada e o sentido moral havia caído ao nível mais baixo, Pio XII não dispunha de força alguma semelhante e pôde apelar somente à moral; viu-se obrigado a contrastar a violência do mal com as mãos nuas. Poderia ter elevado vibrantes protestos, que pareceriam inclusive insensatos, ou proceder em silêncio, com decisão. Palavras gritadas ou atos silenciosos. Pio XII escolheu os atos silenciosos e tratou de salvar o que poderia ser salvo».
Pouco antes de morrer, Lapide fez novas declarações, juntamente com sua mulher Rute, historiadora e especialista em judaísmo, as quais em 1997 foram incluídas na revista alemã PUR-Magazin. Classificou as asserções de Hochhuth como «preconceitos injustos contra o papa» e definiria tais declarações como «uma simplificação e em parte calúnias». Asseverou ele: – «Posso afirmar com verdade que o papa, pessoalmente, os núncios e toda a Igreja Católica salvaram da morte cerca de quatrocentos mil judeus».
Lapide recordaria ainda que, antes do Natal de 1944, esteve com Pio XII durante cerca de uma hora; entre outras coisas, disse o sumo-pontífice: – «Sr. Lapide, estou certo de que, no futuro, vai pensar-se que eu poderia ter feito mais para salvar judeus – e é evidente que poderia fazer mais; mas é uma realidade aquilo que pude fazer».
Antes de terminar estas linhas, recordo apenas mais três episódios: – Em 18 de janeiro de 2005, uma delegação de representantes religiosos judeus, deslocando-se ao Vaticano em visita a S. João Paulo II, agradeceu o que a Igreja Católica havia feito em favor das vítimas do Nazismo; – em 18 de junho de 2008, um pequeno grupo de sobreviventes do ‘Holocausto’ foi à presença de Bento XVI com idêntica finalidade; – e, ainda em 2008, Erich A. Silver, destacado rabino americano de Cheshire (Connecticut), escreveu no prólogo do livro de Margherita Marchione, Papa Pio XII – Un antologia di testi nel 70 anniversario dell’incoronazione, então publicado: – «Vale a pena destacar que, após o fim da guerra e até à sua morte, os judeus continuamente elogiaram Pio XII, reconhecendo-o como salvador.»
Contra as declarações inequívocas de ilustres judeus, é impossível que alguém possa sustentar e propagandear as calúnias contra o papa Pio XII; se assim o fizer, creio que será por inconsciente ignorância histórica, que não por maldade consumada. Sem sombra de dúvida, julgo que é de suprema justiça reconhecer que o papa Eugénio Pacelli deve ser julgado pelo que fez com toda a coragem e com toda a decisão, e menos pelo que não pôde dizer, por não pretender agravar a sorte das vítimas. Creio que os documentos do Arquivo do Vaticano, agora publicamente facultados, irão confirmar-nos que o papa Pio XII, em toda a sua grandiosidade, foi um acérrimo defensor da humanidade… e dos judeus e demais perseguidos.