Modos de interação entre ciência e religião
π [Pessoas & Ideias]
π.6 ~ Berry e a Comunhão
Miguel Oliveira Panão
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Thomas Berry, sacerdote Passionista, era uma combinação de alguém sem medo da mudança, com uma insaciável curiosidade intelectual, interesse em coisas grandes e ser feliz com pequenas coisas. No seu ”O Sonho da Terra” (The Dream of the Earth), Berry diz que vivemos entre duas histórias: a descrição científica da evolução e o relato bíblico da criação. O resultado desta dicotomia para muitas pessoas foi a alienação do ser humano relativamente ao mundo natural. Por isso, Berry sugere que só uma nova história pode integrar as dimensões material e espiritual da evolução. Que tipo de história?
Uma das frases mais marcantes do pensamento de Thomas Berry é a de que
«O universo é uma comunhão de sujeitos, não uma colecção de objectos.» (“Evening Thoughts”, Sierra Club Books, 2006, p. 17)
Assim, coloca no centro narrativo da nossa história, a relacionalidade presente entre todos os elementos que compõem o universo, independentemente do seu grau de subjectividade. Por outro lado, Berry dirá, também, que — «O universo é o único texto sem contexto.» Por isso, todo o modo particular de ser no mundo refere-se ao universo e à forma como esse “texto” enquadra tudo o que nele existe. Berry está convicto que somente compreendendo a história do universo se revelará o nosso papel nessa narrativa e nessa revelação encontraremos a orientação do caminho a seguir no futuro, começando pela tomada de consciência de uma transição de era geológica.
Neste momento, vivemos na era geológica do Cenozóico pela nova vida que surgiu após o cataclismo que terá resultado na extinção dos dinossáurios, mas no pensamento de Berry, a comunhão de sujeitos aponta para a emergência de uma nova época geológica: o Ecozóico. Nessa nova época do planeta Terra, a participação integral de todos os membros da comunidade planetária salienta a exigência de um novo tipo de comunhão assente na maior compreensão de como e porquê tudo está relacionado com tudo. Porém, essa emergência ainda não é certa porque implica abdicar de uma coisa: o controlo. O desenvolvimento tecnológico tem acontecido pelo fascínio que o ser humano tem pela sua capacidade de controlar as coisas através da tecnologia. Daí que, em vez de nos dirigirmos ao Ecozóico, continuamos a insistir no movimento orientado para o Tecnozóico.
O Tecnozóico favorece uma compreensão do mundo como colecção de objectos a controlar. Num episódio da série recente “Undeclared War”, explica-se o modo como se pode controlar as pessoas e os eventos através da tecnologia das redes sociais. Cria-se um grupo falso com um ideal e pessoas comuns aderem ao grupo. Depois, cria-se um grupo falso com a antítese do primeiro ideal e pessoas normais aderem, também, a esse grupo. Através de posts, estimulamos a emoção das pessoas por cada Ideal e combina-se uma manifestação no mesmo dia, hora e local para ambos os grupos. Resultado? Violência a partir do controlo das emoções das pessoas para alimentar a ideia falsa de um governo que não sabe lidar com as situações e, por isso, não merece ser eleito. Berry afirma que — «O que ganhámos ao controlar o mundo como uma colecção de objectos, perdemos na nossa capacidade para a intimidade na comunhão de sujeitos.» Sair do Tecnozóico e caminhar na direcção do Ecozóico pode começar por compreendermos melhor os diferentes modos de ser dos sujeitos.
A palavra animal tem a sua raiz em anima — alma — uma visão que confere interioridade à psique de cada ser do mundo vivente e a base de uma presença interior que se pode experimentar entre os seres. Porém, Berry propõe irmos mais longe e — «Enquanto o mundo não vivente não tem uma alma vivente como princípio de vida, cada membro no mundo não vivente possui o equivalente do ser no princípio interior de ser. Esta é uma forma interior que comunica uma potência, uma qualidade, e uma majestade que nem o mundo vivente pode transmitir. De um modo mais íntimo, o mundo não vivente oferece a misteriosa substância que se transforma em vida. Em todo este processo, acontece uma comunhão que pertence ao reino do espírito. Existe o espírito da montanha, o espírito seguramente dos rios e do grande mar azul. (…) [Tais] espíritos são reconhecidos como modos de presença pessoal.» A escritora Nan Shepherd demonstra esta intuição ao partilhar a sua experiência de que «a montanha tem um interior» (A Montanha Viva, Edições 70, 2022) e — «existe mais no luxo do topo de uma montanha do que um ajuste fisiológico perfeito. O algo mais que existe reside dentro da montanha. Algo move-se entre mim e essa. Lugar e mente podem interpenetrar-se até que a natureza dos dois se altere.»
Somos pó das estrelas e ao pó retornamos após a nossa morte. Mas a consciência que experimentamos enquanto, animados, caminhamos pela Terra, expressa uma transformação do modo de ser do universo através da nossa existência. Esse universo que podemos compreender como a revelação principal do divino, a Primeira Escritura, como diz Berry, o locus principal da comunhão humano-divina. — «A unidade do universo precisa de ser compreendida. O universo é uma comunidade interactiva através da sua total extensão no espaço e desenvolvimento no tempo.» (“Evening Thoughts”, p. 70). Em nós, o universo assume uma consciência. Nós somos parte do universo, não estamos à parte desse. E o nosso papel parece ser o de aprofundar a realidade da comunidade da qual todos os seres viventes e não-viventes fazem parte, reconhecendo nisso a unidade do universo. Pois, como diz Berry, «não há comunidade, seja a que nível for, que possa sobreviver se não estiver fundada na unidade do universo.»
Que tipo de história, afinal, pode integrar as dimensões material e espiritual da evolução? A visão de Thomas Berry parece-me apontar para uma história de Comunhão.
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay