Modos de interação entre ciência e religião
π [Pessoas & Ideias]
π.2 ~ Teilhard e a Noosfera
Miguel Oliveira Panão
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Era adolescente e estava num grupo de oração quando um diácono, homem culto e conhecido por ler centenas de livros, volta-se para mim e diz – «Haverias de ler Teilhard de Chardin.» Ele sabia que eu gostava de ciência e o nome ficou-me na memória, mas só passados alguns anos é que me cruzaria com um edição de 1998 do famoso livro daquele padre jesuíta paleontólogo intitulado ”O fenómeno humano”. Não conheço qualquer cientista e sacerdote que tenha a capacidade de Teilhard de elaborar um discurso onde a ciência se entrelaça de tal forma com a teologia que se torna impossível ver uma, sem ver nessa a outra. O entrelaçar ocorre no significado a dar às coisas em si mesmas, sem que a teologia viole as leis científicas que usamos para descrever e explicar o mundo à nossa volta, ou a ciência impeça o perscrutar teológico do sentido mais elevado das coisas, mantendo qualquer ideia de Deus permanentemente aberta, acolhendo o que Ele quiser revelar de Si mesmo. Porém, Teilhard teve uma ideia que me parece de tal modo universal que considero abrir novos horizontes de sentido e significado relativos ao pensamento tanto na ciência como na teologia.
Quando pensamos na história do universo, notamos algo de extraordinário. Nos primórdios do cosmos existiam apenas partículas. Essas começaram a interagir umas com as outras para formarem átomos. Depois, os átomos começaram a interagir uns com os outros para formarem moléculas. Da interacção entre moléculas surgem macro-moléculas e, eventualmente, os primeiros organismos uni-celulares. Da interacção entre estas células emergem os organismos multi-celulares e, assim, se entrevê um padrão de incremento de complexidade na história do universo. Mas a um dado momento, Teilhard diz que —
«…se o universo nos aparece sideralmente como em vias de expansão espacial (do ínfimo ao imenso), do mesmo modo, e ainda mais claramente, ele se nos apresenta, fisico-quimicamente, como em vias de envolvimento orgânico sobre si próprio (do muito simples ao extremamente complicado) achando-se este envolvimento particular de complexidade experimentalmente ligado a um aumento correlativo de interioridade, quer dizer de psique ou consciência.» (O Fenómeno Humano, 1998, Paulus, p. 286)
E assim introduz a Lei da Complexidade-Consciência. Será esta lei que justifica a ideia desconcertante e universal de Teilhard — a Noosfera.
Todos reconhecemos a geosfera como o conjunto de tudo o que se refere à matéria sólida da Terra. Reconhecemos ainda a atmosfera, hidrosfera e, por último, o caso da biosfera como o conjunto de tudo o que se refere à vida na Terra. Porém, a partir do momento em que o ser humano revela consciência através dos pensamentos que gera na sua mente e exterioriza por palavras, gestos ou desenhos, emerge tudo o que se refere ao pensamento que manifesta, na Terra, através da nossa espécie, a noosfera com raíz na palavra grega νόος (nous, “mente”). Assim introduz Teilhard esta ideia de amplitude planetária:
«A mudança de estado biológico que leva ao despertar do pensamento não corresponde simplesmente a um ponto crítico atravessado pelo indivíduo, ou mesmo pela espécie. Mais vasta do que isso, ela afecta a própria vida na sua totalidade orgânica, e, por conseguinte, assinala uma transformação que afecta o estado do planeta inteiro. (…)
A psicogénese levara-nos até ao homem. Apaga-se agora, revelada ou absorvida por uma função mais elevada: o parto, primeiro, e depois, todos os desenvolvimentos do espírito, a noogénese. Quando, pela primeira vez, num ser vivo, o instinto se avistou no espelho de si próprio, o mundo inteiro deu um passo.
Por termos reconhecido e isolado na história da evolução a nova era de uma noogénese, eis-nos forçados, correlativamente, a distinguir, na majestosa ordenação das folhas telúricas, um suporte proporcionado à operação, quer dizer, uma membrana mais. Em volta da centelha das primeiras consciências reflexivas, os progressos de um círculo de fogo. O ponto de ignição alastrou-se. O fogo ganha terreno. Finalmente, a incandescência envolve todo o planeta. Uma única interpretação, um único nome se encontram à medida deste grande fenómeno. É verdadeiramente uma camada nova, a camada pensante, exactamente tão extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as camadas precedentes, que, após ter germinado no terciário declinante, se expande desde então por cima do mundo das plantas e dos animais: fora e acima da biosfera, uma noosfera.» (Fenómeno Humano, pp. 165-166)
Por que razão haveríamos de considerar esta ideia de Teilhard, e desenvolvida contemporaneamente pelo bio-geo-químico russo Vladimir Vernadsky, como uma ideia universal?
O reconhecimento da noosfera encontra a sua demonstração no antropoceno. Isto é, na observação de que o nosso pensamento começou a mudar, literalmente, a face do planeta. Porém, esse pensamento abriu as portas de uma dimensão da realidade mensurável somente pela relacionalidade entre os seres pensantes — a dimensão espiritual. A percepção da realidade que está para além da materialidade é um fruto exclusivo da consciência humana.
O pensamento é subjectivo porque emerge a partir do sujeito. Daí que não exista instrumento que meça a veracidade do pensamento porque todo o pensamento é, materialmente, real a partir do momento que é exteriorizado. Mas do mesmo modo que a acção humana tem afectado a biosfera com a ameaça da extinção de espécies, será que começa, também, a afectar a noosfera com a ameaça da extinção dos pensamentos? É possível extinguir pensamentos?
Vivemos na Era da Informação e o ser humano orgulha-se da liberdade de expressão, mas a onda cultural que assisto é a da uniformização e esquecimento do pensamento. Parece haver cada vez menos espaço para a diversidade de pensamento e cada vez menos interesse em aprofundar pensamentos. Um pensamento único é diferente de termos o mesmo pensamento. Por exemplo, “toda a vida tem valor” é um pensamento único que encontra muitas e diferentes expressões mediante as culturas. Nesse sentido, redescobrir Teilhard de Chardin e a sua ideia da noosfera poderá dar ao diálogo entre o conhecimento científico e o saber teológico o vislumbre de um caminho ainda por explorar. Já agora, uma nota. Repararam que são parcas as traduções para português das obras intemporais deste pensador?
Foto: Pe. Pierre Teilhard de Chardin – 1955 [Archives des jésuites de France]