Artigo originalmente publicado no Correio do Vouga e em https://teologicus.blogspot.com/
Luís Manuel Pereira da Silva*
O mistério, na perspetiva cristã, não é sinónimo de ‘enigma’, de ‘código indecifrável’ ou ‘indecifrado’. Antes, o entendimento cristão de uma realidade como ‘mistério’ recupera o que a sua etimologia evoca: a ideia de uma densidade perante a qual se faz silêncio. Não o silêncio do desconhecimento, mas o silêncio do ‘deixar-se abarcar’ pela grandiosidade da realidade que suscita esse ‘espanto misterioso’.
O Natal é, a esta luz, mistério; realidade densa perante a qual nos despojamos de certezas para nos deixarmos emudecer de surpresa e espanto.
A perspetiva cristã acrescenta-lhe, ainda, uma nota: essa densidade da realidade que se nos afigura como mistério confere sentido àquele que se emudece. A densidade do mistério densifica a realidade que emudece e se emudece.
O homem não se fecha, perante o mistério: abre-se a um novo horizonte que, sem o mistério, lhe ficaria definitivamente encerrado, criando um aparente paradoxo com a ideia difundida de mistério que o identifica com enigma. Mistério, na leitura cristã, não é ‘fechamento’, mas o silêncio para que a Palavra seja pronunciada e confira nome ao que é, antes do mistério, um nada.
O mistério cristão é, por isso, realidade densa que torna significativa a existência. O mistério diz da realidade a que se reconhece tal condição (de mistério) que ela é tão densa que podemos recolher mais e mais significado para o nosso existir.
Do Natal essa foi a experiência ao longo dos tempos. A densidade mistérica do Natal fez desse evento que é a Encarnação de Deus uma realidade de que se recolhem sempre novos significados para a existência humana.
No hoje da história dos Homens, o Natal afigura-se como realidade que se pronuncia como escândalo: o de um Deus que não é confinável aos limites da tentação de O encerrar nas categorias com que pretendemos conceber o divino.
Se fôssemos nós Deus, hoje, à maneira do entendimento contemporâneo, jamais encarnar seria uma prioridade ou, sequer, uma possibilidade. De Deus esperaríamos que permanecesse na distância de um absoluto isolado, insuscetível de se ‘contaminar’ com a humanidade e, por isso, amoral e indiferente à criação. Jamais, aliás, o ‘pensaríamos’ criador: talvez ‘força’, talvez ‘energia’, mas jamais relação e menos, ainda, amor.
O escândalo não é, contudo, original nos nossos tempos.
O escândalo da encarnação é-o de todos os tempos desde que, no tempo, Deus ousou intrometer-se com a Sua criação.
A ‘kenose’, o ‘abaixamento’ de que fala S. Paulo [‘Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.’ (Flp 2, 6-8)] é reconhecido pelo mesmo Paulo como ‘escândalo para os judeus e loucura para os gentios’ (1 Cor 1, 23). E é-o, percebemo-lo, ao longo da história, não apenas por escandalizar que Deus aceite ‘reduzir-se’ à condição humana, mas principalmente porque tal ocorra sem que se opere qualquer ‘reducionismo’, conduzindo a um desfecho em que uma das naturezas (a humana ou a divina) fique numa condição em que ‘não seja mais do que…’, para citar o que diz Viktor Frankl para definir todos os reducionismos[1].
A novidade cristã do Natal está precisamente em que a encarnação não reduza Deus ou o Homem ao que a outra natureza é. Uma e outra unem-se sem se fundir nem cindir. Assim o afirma o Concílio de Calcedónia: ‘[Este Concílio] opõe-se aos que procuram separar numa dualidade de filhos o mistério da divina economia da salvação; exclui da ordem clerical os que se atrevem a afirmar sujeita a sofrimento a divindade do Unigénito; resiste aos que pensam numa mistura ou confusão das duas naturezas de Cristo; expulsa os que têm necessidade de considerar celestial, ou de qualquer outra substância, aquela forma humana de servo que assumiu de nós; e excomunga, finalmente, os que contam fábulas sobre duas naturezas do Senhor antes da união, e de uma só depois da união.’ Concílio de Calcedónia[2], Credo de Calcedónia.
Sublinhe-se, com o Cardeal Newman, que ‘[…] os católicos não vieram a acreditar nisso por ter sido definido, mas […] foi definido porque eles já acreditavam.’ (John Henry Newman, Apologia, S/L: Editorial Verbo, s/d, p. 285). Não foi Calcedónia que definiu, determinando o que passaria a ser a fé católica, mas, antes, foi ponto de convergência para o qual confluíram quase cinco séculos de fé celebrada e vivida, assente no reconhecimento de que o Homem Jesus Cristo era totalmente Homem ao mesmo tempo que Deus Verbo era a Palavra total de Deus, em si mesmo Amor, na História.
Unir fundindo numa só natureza desrespeitaria a autonomia da criação; cindir sem unir impediria a realização da salvação. Só uma união que é autêntica relação, encontro, diálogo, movimento de convergência constante, preserva o todo que a encarnação afirma e é tão significativo nos tempos em que nos cabe celebrar o Natal: tempos que ou fundem ou cindem, mas têm tanta dificuldade em realizar efetivo encontro que só o amor sabe concretizar.
Celebrar o natal constitui-se como paradigma da condição genuinamente humana: que se faz do encontro de identidades que são mais autênticas quando ocorre diálogo (a circulação da palavra de um para outro, sem que um dos dois se perca nesse fluxo; seja por ‘arrefecimento’ resultante de distância excessiva; seja por fusão resultante da perda das identidades). Os tempos tendem a ser de monólogos ou de ‘parálogos’ (evocando a etimologia de ‘contra a palavra’).
O Natal é a ‘Palavra a circular entre nós’; sem dividir nem fundir: habitando-nos!
[1] Cfr. Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido, Alfragide, Lua de Papel, 2021, p. 57.
[2] Concílio de Calcedónia, Quinta sessão (22 de outubro de 451) Credo de Calcedónia, [Proémio da definição. Depois dos dois símbolos de fé de Niceia e de Constantinopla] – Tradução a partir da edição espanhola de Heinrich Denzinger e Peter Hünermann, El Magisterio de la Iglesia [Enchiridion Symboloum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum], 1999, n.º 301.