Qui. Abr 25th, 2024
Artigo e foto recolhidos do SNPC

Diz que é, provavelmente, a última entrevista: José Mattoso, distinguido pela Igreja católica com o prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes, fala hoje, no semanário “Expresso”, da História, da mudança da vida religiosa para a laical, da investigação «de um tempo sujeito a um sem-fim de ideias feitas», da relação com Deus e de alguns dos traços do Portugal atual, marcado pela ruralidade e por uma distribuição da riqueza «muito desigual».

«Para mim, a História está em segundo plano. O mais importante é a relação com Deus. Ou seja, a vida contemplativa, como existência consagrada a Deus por meio da oração comunitária, do estudo da palavra divina e do trabalho necessário ao sustento da comunidade»: é a primeira resposta à entrevista de Luciana Leiderfarb.

Para o historiador de 88 anos, a promessa pacificadora para a humanidade «é efetivamente a de Jesus Cristo que vem ao mundo para mostrar, pela sua própria vida, que Deus não é o Javé implacável do Antigo Testamento, mas o Pai que nos dá a vida e perdoa as nossas faltas».

«Não sou historiador por opção profissional, mas para ser fiel à vocação monástica, na medida das minhas capacidades, tal como eu a entendi nessa altura», assinala, no contexto da sua entrada em Singeverga, ao tempo «o único mosteiro contemplativo masculino existente em Portugal», onde veio a perceber que «a vida religiosa era muito mais ativa do que contemplativa».

Verificando a sua «incompatibilidade» com a vida seguida no mosteiro, pediu a dispensa dos votos religiosos, que lhe foi concedida, e voltou «à vida laica». Para José Mattoso, uma das características atribuídas à vida conventual, a reclusão, não é um exclusivo da cela ou do isolamento no campo, mas do «silêncio: silêncio para escutar a voz de Deus e interiorizar a palavra de Jesus no Evangelho».

Depois do casamento, ligou-se, com a mulher, à fraternidade secular dos Irmãozinhos de Charles de Foucauld. De onde nasce essa pertença? «Nas vésperas do Concílio Vaticano II, tomaram relevo os agrupamentos religiosos que procuravam dar testemunho do Evangelho nos bairros mais pobres por meio de uma presença discreta e silenciosa (foi a época dos Padres Operários). Foi o modelo que o P. Charles de Foucauld adotou em meio muçulmano.»

«Estas tentativas inseriam-se no ambiente renovador do Concílio Vaticano II. Tive contacto direto com elas quando frequentei o curso de Ciências Históricas na Universidade de Lovaina, na Bélgica», explicou.

Profundo estudioso da História Medieval, José Mattoso acentua que «o conceito de Idade das Trevas aplicado à Idade Média resulta de um equívoco ou de ignorância pura e simples», e por isso «o pressuposto depreciativo da expressão só revela a ignorância de quem a usa».

«É verdade que a cultura medieval muitas vezes confundia magia e superstição com religião autêntica, e que via milagres e intervenções divinas um pouco por toda a parte. Mas não podemos generalizar a toda a sociedade o que consideramos crendice. Também não podemos esquecer o incalculável valor da arte medieval expressa nas grandes catedrais, nem a genialidade do pensamento teológico demonstrada por um autor como São Tomás de Aquino. Não são produtos das trevas», frisou.

Nesta entrevista, respondida, segundo a jornalista, «com empenho e generosidade», José Mattoso «dedicou-se a responder a mais de 20 questões», enviadas previamente, porque a doença de Parkinson o impede de uma conversa telefónica e a pandemia inviabilizou um encontro.

Rui Jorge Martins
Fonte: Expresso
Imagem: José Mattoso | © Tiago Miranda/Expresso