Sáb. Mar 22nd, 2025
Pedro Ferreira*
Atrevo-me a dizer que a maioria dos portugueses que paga impostos, se visse algumas obras de arte ou eventos culturais que o estado português subsidia, encomenda ou adquire, ficaria escandalizada. Se esses portugueses que pagam impostos tivessem representação na comunicação social ou nos locais de decisão, ou se fossem instrumentalizados por quem pode, de certeza que andariam aí pelas esquinas a dizer mal da vida e do destino que os políticos dão ao dinheirinho dos seus descontos.
Acresce dizer que a maioria dos portugueses que pagam impostos, sobretudo nestes tempos em que o dinheiro anda mais que contado, não tem acesso a museus, cinema ou teatro, até porque uma grande fatia da cultura subsidiada está concentrada em Lisboa, e Lisboa fica longe para a maioria dos portugueses.
No entanto, não me passa pela cabeça sugerir que o estado feche os museus, deixe de encomendar esculturas para as rotundas, deixe de adquirir obras de arte, deixe de financiar orquestras, coros, teatro e cinema. Eu até gosto de museus, e mesmo quando olho para um quadro ou uma escultura que não me diz nada, dou-lhe o benefício da dúvida: a culpa há de ser minha e não da peça. Eu até sou “consumidor” de concertos musicais, por vezes com entrada livre. Eu até vou ao teatro e ao cinema com alguma regularidade. Algumas vezes até vou a espetáculos culturais em auditórios quase vazios de público. Neste país, sou um privilegiado cultural.
Dei por mim a fazer esta reflexão a propósito do escândalo que se pretende propalar a propósito dos gastos com a Jornada Mundial da Juventude. Há quem ache que se poderia receber mais de um milhão de pessoas sem se gastar dinheiro. Há quem ache que se poderia ou deveria fazer uma celebração para mais de um milhão de pessoas sem se construirem a infraestruturas necessárias e, por conseguinte, para esses, as jornadas poderiam ficar de graça. Outros até acham que as jornadas nem se deviam realizar, pois é uma manifestação religiosa e tudo o que é religioso deve estar escondidinho, não vá alguém ficar incomodado.
E não adianta explicar que os cristãos têm tanto direito a manifestar-se e a ocupar o espaço público como qualquer outro grupo. Não adianta lembrar que organizar a JMJ é prestigiante para a cidade de Lisboa e para Portugal. É perda de tempo referir que uma parte substancial do investimento feito resultará em equipamentos que permanecerão após a jornada para benefício de todos. É inútil apontar os enormes benefícios económicos que advêm diretamente da presença de uma multidão, e indiretamente da projeção internacional que resultará em maior procura turística. Já nem me atrevo a evocar a promoção de valores humanos que um acontecimento destes proporcionará certamente.
É perda de tempo argumentar seja o que for pois, do outro lado, vem sempre o sacrossanto argumento da laicidade do estado. É que alguém decidiu e outros repetiram que vivemos num estado laico. Não que a constituição o diga. Mas alguém disse, depois alguém repetiu e, de repente, tornou-se “verdade”. E uma “verdade” que implica que cada vez que um cristão sai da sacristia sinta que pode estar a pisar o risco. Se for de uma religião minoritária, ainda vá lá em nome da tolerância, mas católicos só escondidinhos.
Por acaso a nossa constituição até defende a liberdade religiosa. Isso não significará nada?
Imaginemos que, apesar da constituição defender o direito de aprender e ensinar, os senhores que decidem o que é “verdade”, decretam que o estado não pode gastar dinheiro em escolas ou universidades. Não é assim tão difícil de argumentar: afinal, há muita gente que não tem filhos, logo, não tem obrigação de pagar a educação dos filhos dos outros. Não faz sentido, pois não? Soa a egoísmo, não soa? Esvazia o direito constitucional, não esvazia?
Pois também não faz sentido a defesa de que o estado, embora reconhecendo o direito à liberdade religiosa, se negue a colaborar para que ela se exerça. Pois também soa a egoísmo a defesa de que o estado não colabore com as religiões só porque há quem não tenha religião.
Pode colocar-se a questão da proporção. De facto a JMJ é um evento caro. Será que o apoio estatal a este evento estará dentro das possibilidades do nosso país? Comparemos com o Europeu de Futebol de 2004. De acordo com as estimativas, empata com as jornadas em número de visitantes. Já em investimento do estado, ultrapassou mais de dez vezes as jornadas da juventude (mesmo não contando com os dezanove anos de inflação). No que diz respeito a retorno, de acordo com estudos de entidades prestigiadas, mais uma vez há quase um empate (embora, mais uma vez, esteja a negligenciar a inflação). Ou seja, enquanto o Europeu de 2004 deu ao estado português um monumental saldo negativo entre investimento e o retorno económico, as previsões apontam para que a JMJ deem um elevado saldo positivo. Convém que reflitam nisto aqueles que defendem a realização do Mundial de Futebol em Portugal e Espanha. Cheira-me que o futebol nem sequer é um direito constitucional!
No custo total da JMJ (suportado em menos de metade pelo estado português), estão incluídas centenas de atividades culturais, infraestruturas de segurança, infraestruturas ambientais entre outras. E mesmo o mais acérrimo defensor da pretensa laicidade do estado há de reconhecer que estes investimentos não são inúteis.
Convém referir ainda que os visitantes que as jornadas atraem não são daqueles que procuram Portugal atraídos apenas pela cerveja barata e pelas drogas acessíveis. No programa destes jovens não está a destruição da decoração dos hotéis nem a vandalização de esplanadas. Estes visitantes, até podem ensinar a muitos dos nossos jovens que a verdadeira alegria só é possível na posse de plena consciência.
Mas a JMJ tem ainda a seu favor um aspeto que nenhum outro evento teve: a penetração no Portugal profundo. Todo país (incluindo as regiões autónomas) receberam jovens de todas as partes do mundo para as chamadas pré-jornadas. Nem a Expo, nem o Europeu se espalharam assim por todo o país, não discriminando entre grandes os centros urbanos do litoral e os espaços mais rurais do interior. Os participantes nas jornadas entraram nas casas e no coração das famílias portuguesas. Como se quantifica a alegria que estes jovens espalharam até nas ruas das aldeias mais recônditas do nosso país?
Nem todas as pessoas têm fé. Quem a tem tem direito a tê-la e o dever de respeitar os que a não têm. Mas exige-se reciprocidade. E é só isso que se exige.

 


*Professor e secretário da Comissão Diocesana da Cultura | Aveiro


Imagem recolhida de Rádio Renascença