Ter. Fev 18th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião

Pontes


Ponte (VIII) Dor—Amor

Miguel Oliveira Panão

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As dores físicas são um alerta para sobrevivermos e percebermos o que não está bem em nós. As dores mentais podem surgir quando nos confrontamos com a incompreensão, seja da nossa parte como da parte dos outros. As dores relacionais provêm dos cortes que se geram entre cada um de nós e os outros, ou perplexidades sem razão de ser que geram défices nos nossos relacionamentos. As dores sociais provêm da assimetria entre estilos de vidas e escolhas. E as dores espirituais provêm da insaciável sede de sentido e significado para o lugar, tempo e sensibilidade a tudo o que está para além da matéria e da compreensão do mundo visível. As dores não se vivem isoladas umas das outras, mas entrelaçadas. Uma dor de cabeça pode gerar uma incompreensão mental que afecta o relacionamento com as pessoas à nossa volta, afectando a capacidade de viver em sociedade e perguntamos (a Deus) — «porquê a mim?» Mas a dor é apenas uma face da nossa existência. A outra é o amor.

O amor é físico porque altera o bater do coração, gera vida e faz-nos esquecer, por vezes, as dores. Mas o amor é também mental porque um pensamento autêntico, genuíno e orientado para a compreensão de um mundo mais unido é um acto de amor, convertendo-se em sabedoria. O amor é relacional na medida em que está no cerne da nossa existência. Isto é, quando compreendemos o ser humano como um ser-em-relação, amar só é possível quando o dirigimos a um “outro”. O amor quando se manifesta socialmente revela uma comunidade que possui uma vida comum traçada por laços fortes e impensados. Por fim, Deus é amor e basta isso para compreender como o amor está na raiz de tudo o que existe neste universo. Mas dor e amor parecem tão antagónicos que podem gerar alguma tensão existencial. Qual a ponte?

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro? Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes; durante a noite, e não tenho sossego.» (Sl 22, 2-3)

«Cerca das três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: Eli, Eli, lemá sabactháni?, isto é: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mt 27, 46)

O sofrimento à luz do abandono de Jesus na cruz é a ponte entre dor e amor.

Jesus abandonado na cruz é um dos pontos fundamentais da espiritualidade da unidade do Movimento dos Focolares. A sua fundadora, Chiara Lubich, escreve — «estou convencida de que a unidade, no seu aspecto mais espiritual, mais íntimo, mais profundo, só pode ser compreendida por uma alma que tenha escolhido como seu quinhão de vida (…) Jesus Abandonado que grita: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” — ecos do salmo 22, e continua — «Toda a luz sobre a unidade provém daquele grito. Devemos escolhê-lo como único objectivo, única meta, ponto de chegada da nossa vida e… gerar para a Unidade um número infinito de almas. (…) O que falta a Jesus, tão tremendamente angustiado? Que remédio pode curar a sua dor? Deus! É Deus que lhe falta! E como podemos dar-lhe Deus? Estando unidos, tê-lo-emos entre nós e Jesus, que nascerá da nossa unidade, consolará o nosso amor crucificado.» (Um Caminho Novo, Cidade Nova, 2004)

Em cada sofrimento está o rosto daquele que, sendo Deus, deu a Sua vida para ser uma ponte entre a dor e o amor. Fixando o olhar ou o pensamento n’Ele quando estamos diante da dor, aprendemos a amar com a dor, e Ele inspirar-nos-á o modo de ser e fazer que confunda a lógica humana, abrindo uma janela para uma vida espiritual diferente, divina. Aliás, Lubich referiu-se uma vez a Jesus Abandonado como a pupila do olhar de Deus sobre o mundo e através da qual poderemos vislumbrar um pouco do modo como Deus vê: um dom-total-de-si em tudo o que existe.


Imagem: Cristo de São João da Cruz | Salvador Dalí [1951]