Seg. Fev 17th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião 

π [Pessoas & Ideias]


π.9 ~ Haught e a Conversação

Miguel Oliveira Panão

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John F. Haught é um homem sereno, alto, afável e sentimos a sua arguta e respeitora inteligência quando fala da relação entre ciência e religião. Ele usa palavras universais para expressar as suas ideias porque as coisas profundas podem manter-se simples e compreensíveis. Na sua visão para a relação entre ciência e religião oferece 4Cs: Conflito, Contraste, Contacto e Confirmação. Curiosamente, creio que existe um quinto C presente em todo o seu pensamento: Conversação.

O modo como Haught procura conversar com todos, independentemente das suas crenças e esforço na direcção de uma concordância intelectual, consiste em aplicar no seu discurso o mesmo princípio que orienta a sua visão do mundo: a linguagem do processo.

John Haught reconhece a originalidade do pensamento de e da sua filosofia do processo para compreender o modo como percepcionamos o mundo. Usualmente usamos os nossos cinco sentidos, como fez Lucrécio em De Rerum Natura, para percepcionar o mundo e justificar de modo material a vivência das questões espirituais. Mas esta distinção entre a percepção da realidade através dos sentidos e o confronto com a percepção que provém da mente, levou a um dualismo que separou dois mundos que nunca estiveram separados. A solução que Haught oferece no seu livro sobre a “Aventura Cósmica” é a de que — «A Natureza é feita de momentos de percepção.» — Momentos que se tornam ocasiões de experiência que permanentemente actualizam no “eterno” presente, o momento anterior através da “memória” e o momento seguinte através da “antecipação”.

Um dos primeiros livros que li de Haught focava-se em “Deus após Darwin”, e nesse expressava como a teologia cristã em diálogo com a teoria da evolução revela a criatividade de Deus em conversação com os processos do mundo para que esse, apesar das suas limitações ou mesmo usando-as, pudesse tornar-se mais sensível à presença divina. A dor, o sofrimento e a morte fazem parte do processo evolutivo e Deus envolve-se nesses processos a partir do seu interior. Por isso, ao abraçar a teologia do processo, Haught reconhece que da interacção com o mundo emerge a ideia de que Deus também evolui, ao contrário de se insistir numa ideia de Deus inspirada num ideal de perfeição física imutável. Para algumas pessoas, esta visão pode ser desconcertante, mas de Haught aprendi o valor que tem a abertura da mente à percepção que Deus quiser dar de Si mesmo, em vez de nos fecharmos sobre ideias fixas que impedem a pessoa humana de se abrir, continuamente, a uma conversação com Deus.

Na Laudato Si’, o papa Francisco expressa que — «Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós.» (n. 84) — pelo que, se o universo é a linguagem de amor através da qual Deus nos fala, significa, como diz Haught, que o universo é uma narrativa e propõe o Princípio Cosmológico Narrativo como base de conversação entre nós e Deus através do Universo. Para Haught, o Princípio Cosmológico Narrativo é uma síntese que reconcilia a ciência com a teologia, rica de significado, onde a evolução das espécies e uma compreensão religiosa do mundo entram em conversação.

O universo como narrativa implica um processo dinâmico e contínuo que se alinha com uma compreensão de Deus como criador que cria ainda. A história construída pelos momentos de percepção que perfazem a realidade, gradualmente, revelam o sentido que possuem, permitindo novas compreensões sobre a realidade. E o facto da história não ter terminado ainda, alinha-se com a esperança e antecipação de um futuro mais pleno e significativo, oferecendo uma visão positiva da realidade essencial para o desenvolvimento e amadurecimento de uma fé religiosa.

O Princípio Cosmológico Narrativo impulsiona-nos a um aprofundamento dos níveis de complexidade e consciência presentes no mundo através de processos de auto-transcendência activa como introduzida por Karl Rahner, teólogo estudado em profundidade por John Haught, onde os seres humanos se tornam conscientes de si mesmos, do mundo e de Deus como Realidade que não pode ser contida pelos limites da nossa experiência e compreensão do cosmos.

Quando traduzi para inglês a minha resposta a 12 questões que me foram feitas por um amigo que após 30 anos de Catolicismo, deixou de crer em Deus, enviei o resultado ao John, pedindo-lhe uma opinião. Não imaginaria se responderia a um engenheiro que sonhava por uma conversação mais profunda entre ciência e religião, mas ele respondeu. Ficou impressionado com o meu método que distinguia com clareza a ciência da religião e as procurava relacionar de modo significativo. Foi honesto ao apontar os problemas de edição por ser um livro escrito por alguém que não tem o inglês como língua-mãe. E encorajou-me a continuar este esforço que raramente vê à sua volta. A fim de alguns anos após essa troca de emails, sinto que o esforço continua e que estamos muito aquém da potencialidade que a conversação entre ciência e religião contém. A simplicidade com que Haught entra em conversação com pessoas como o filósofo ateu Daniel Dennet é a mesma com que dialoga com jovens engenheiros como era o meu caso, demonstrando a qualidade da humildade que caracteriza uma atitude mental de quem está sempre disposto a aprender coisas novas.

A conversação com o universo exige do ser humano a criatividade de ir para além de si mesmo e uma abertura da mente à diferença existente entre os diversos níveis de interpretação e percepção da realidade. Os escritos de Haught são uma pérola da sua conversação pessoal e inteligente com Deus e o com universo. Através do seu estilo de conversar, estou confiante que todos encontraremos uma oportunidade de aprender mais e melhor o que liga o mundo físico exterior ao mundo da mente interior para melhor viver o mundo espiritual que percepcionamos.

Bibliografia de John F. Haught

  • “The Cosmic Adventure – Science, Religion and the Quest for Purpose”, Paulist Press, 1984
  • “Cristianismo e Evolucionismo – Em 101 perguntas e respostas”, Gradiva, 2009
  • “Is Nature Enough: Meaning and Truth in the Age of Science”, Cambridge University Press, 2006
  • “God after Darwin – A Theology of Evolution”, Routledge, 2019
  • “Mistério e Promessa”, Paulus, 1998 (Brasil)
  • “Science & Religion – From conflict to conversation”, Paulist Press, 1995 (apesar do título indicar a conversação, J. Haught não a aprofunda)

 


Imagem de Patricio González por Pixabay