Modos de interação entre ciência e religião
π [Pessoas & Ideias]
π.7 ~ Zizioulas e a Liberdade
Miguel Oliveira Panão
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Num mundo em que a liberdade é ameaçada pela crescente incapacidade de distinguir facto de ficção, tornando cada ser humano permeável a simples, mas profundas, alterações de comportamento, o relacionamento com o mundo natural torna-se um ponto-chave de salvação da humanidade da distopia em que vive e não se dá conta disso. Pelo facto de vivermos cada vez mais imersos em ambientes digitais, até uma pessoa pode ser excluída do júri de um julgamento porque viu uma série sobre o sucedido e, por isso, consideram que o seu juízo afectado pela ficção, deixou de ser capaz de avaliar a realidade. O pensamento do Metropolita de Pergamon Ioannis (John) Zizioulas, que faleceu no início de fevereiro deste ano, pode ajudar de um modo criativo a voltar à realidade através da natureza.
John Zizioulas é muito conhecido em Itália e pouco em Portugal, mas o seu pensamento considero ser uma inspiração a descobrir pela compreensão que oferece do ser humano como comunhão e as implicações que isso tem relativamente à experiência existencial da realidade através da vivência da liberdade no quotidiano. Um primeiro ponto é a não restrição que Zizioulas faz da dimensão sacerdotal de cada pessoa aos ambientes sociais ou religiosos, mas estende-a a toda a criação. A nossa preocupação ambiental centra-se, naturalmente, no princípio ético cujo objectivo consiste em orientar os nossos actos para que sejam reflexo de um estilo de vida sustentável. Mas, para Zizioulas, uma nova cultura pode emergir da dimensão litúrgica, em vez do princípio ético, ocupar o lugar central. Zizioulas foi quem propôs uma compreensão do ser humano como sacerdote da criação, significando isso que a ideia-chave daquilo que nos distingue de entre tudo o que existe na criação é a — «capacidade [do ser humano] colocar-se em relação, de modo tal a criar situações de comunhão a partir das quais os seres individuais são libertados do seu ser voltado sobre si mesmo e, portanto, dos seus limites, e passam a ser referidos a algo mais geral do que eles mesmos, a um “outro”.» — A Deus.
Deus tudo criou, livremente, por amor. E uma boa parte das pessoas pensa que nós somos especiais de entre todos os animais por sermos racionais. Porém, o curioso é que nenhum animal iria contra a racionalidade intrínseca da natureza, ao passo que nós fazemos isso até ao limite de destruirmos a própria natureza. Por que razão? A ideia perspicaz de Zizioulas é que a característica humana que nos permite isso é a liberdade. Zizioulas reconhece que à liberdade associamos normalmente a capacidade de escolher, mas essa é uma liberdade relativa porque está limitada pelas possibilidades, designando esta liberdade relativa por concretude. E aqui Zizioulas propõe um itinerário interessante começando por reconhecer que,
- «a questão da liberdade e a criação do nada são interdependentes: se alguém cria a partir de alguma coisa, encontra-se diante de algo dado; se cria do nada, é livre no sentido absoluto do termo.»
- «o ser humano é uma criatura. Isto quer dizer que se encontra diante de um dado.»
- «Deus, o Criador, é para ele um dado. [O ser humano] pode escolher o que quiser, mas não pode evitar o facto da “concretude”. E, então, o homem é livre em sentido absoluto?»
- «É neste ponto que emerge a ideia de imago Dei».
Por nos considerarmos imagem de Deus, dentro de nós existe um desejo insaciável da liberdade absoluta que apenas existe em Deus. Por isso, ao desejo segue-se a tragédia que, segundo Zizioulas, — «é a situação criada por uma liberdade que se orienta para a própria realização e que é incapaz de atingi-la.» Nenhum animal possui o desejo insaciável de liberdade absoluta. Mas, por que razão Deus nos criou assim? Isto é, com o desejo de algo que nunca seremos capazes de alcançar? Aliás, Zizioulas diz que o suicídio é, precisamente, uma manifestação destruidora desse desejo. Mas, ao contrário da solução que Zizioulas propõe para este dilema, o suicídio (onde incluiria a Eutanásia) é um acto de quem se volta para si próprio, esquecendo tudo e todos a sua volta. A solução de Zizioulas é que o ser humano se assuma como sacerdote da criação para que o mundo natural sobreviva num plano existencial que está para além da matéria, do espaço e do tempo.
A relação é um evento transformativo a diversos níveis de interpretação da realidade. Se o ser humano soubesse criar uma relação criativa de união com a natureza, essa seria libertada dos seus limites e adquiriria uma pessoalidade própria que a abriria (de alguma forma) a uma comunhão mais plena com Deus. Zizioulas diz que — «a crise ecológica afigura-se como uma crise de cultura: é uma crise que está ligada à perda de sacralidade da natureza na nossa cultura.» A re-descoberta dessa sacralidade poderia ser feita através da vivência recíproca com a natureza na liberdade. A liberdade absoluta em Deus não me parece ser tanto que Ele faz tudo o que eu imagino que Ele possa ser livre de fazer, mas talvez em que Ele faz tudo aquilo que quer. Do pouco que sabemos de Deus, parte essencial da Sua liberdade é Ser-Amor. O nosso primeiro acto como sacerdotes da criação poderia ser esse: sermos-amor com a natureza, para juntos elevarmos a nossa existência a Deus.
Bibliografia de Zizioulas
- “A criação como Eucaristia”, Missão e Mundo, 2001, de onde são retiradas as citações.
- “Being as Communion”, Darton, Longmont, Todd, 1985
- “Communion and Otherness”, T&T Clark, 2006