Ter. Fev 18th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião

π [Pessoas & Ideias]


π.3 ~ Whitehead e o Processo

Miguel Oliveira Panão

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Alfred North Whitehead é um matemático que escreveu uma das obras mais complexas que li de filosofia sobre o Processo e a Realidade, onde afirma que a realidade é processo. A primeira luz que a ideia de Whitehead sobre o processo acendeu na minha mente foi quando a associou à natureza do ser humano, soando como uma ideia fundamental para nos ajudar a desenvolver uma visão de pessoa mais assente sobre a sua transformação do que na sua realização. Para Whitehead, o ser constitui-se pelo seu devir (becoming). E, nesse sentido, o processo é o devir da experiência. Em síntese, do ponto de vista do processo, não és enquanto não te tornares permanentemente.

Já Heráclito nos seus fragmentos afirmava que todas as coisas mudam (Fragmento 36), mas Whitehead considera existirem dois tipos de mudanças associadas ao à fluência dos processos: a concrescência e a transição. Na concrescência, crescemos juntos, ou seja, os diversos elementos separados juntam-se para constituirem-se num só e transformam-se. Na transição, assistimos a uma perpétua morte para que algo no presente nasça de acordo com o potencial do passado. A criatividade emerge de uma transição (morte) que impulsiona novas concrescências (vida). Todo o processo no pensamento de Whitehead parece permear-se deste sentido cíclico de toda a vida que nasce de uma morte. E se o universo é assim, quem acreditamos que o criou, Deus, pode mudar?

No diálogo entre a ciência e a fé, esta ideia de processo de Whitehead leva-nos a repensar a ideia que temos de imutabilidade de Deus. Se Deus criou o universo e esse é mutável, não será a mutabilidade um traço “onto-sapiencial” da percepção de que Deus muda ao interagir com o mundo? Talvez o exemplo mais evidente da mutabilidade de Deus seja Jesus. Deus assume uma vida humana sem qualquer hipótese de evitar a morte, mas ao morrer, gera nova vida para lá da materialidade com a ressurreição. Muda para mudar.

A imutabilidade de Deus presente na ideia de processo está na aliança que Ele estabeleceu com a humanidade. E pela imutável ideia de Deus-presente no íntimo de cada elemento criado, todo o processo que dinamiza a vida humana é gérmen de criatividade cuja fonte de inspiração encontramos, naturalmente, em Deus. Se Deus não amasse de tal forma o mundo, não teria aceite ser transformado como aconteceu na vida de Jesus, fisicamente, mentalmente e até espiritualmente. Nas palavras do teólogo John Haught — «o que acontece no mundo interessa, eternamente, ao amor dom-de-si-mesmo que chamamos de Deus. Neste sentido, Deus pode mudar com aquilo que acontece ao mundo.» Algo que se liga à intuição que temos da kénose de Deus, isto é, de Alguém que se esvazia de si mesmo (Fil 2, 7), como S. Paulo reconhece em Deus-filho, Jesus.

Entrar num processo de diálogo entre ciência e teologia implica que tanto o cientista, como o teólogo, precisam de esvaziar-se de si mesmos (uma kénose) e das ideias pré-concebidas que têm, para poderem, plenamente, partilhar e acolher a ideia do outro, fazendo-a sua e chegar, talvez, a uma ideia diferente. Só se estiverem dispostos a deixarem as suas ideias morrer poderão transitar para a ideia que provém do crescimento que fazem juntos. Uma ideia que emerge da concrescência dialogal. Por outro lado, a ideia de processo é profundamente relacional e alinhada com ciências como a mecânica quântica, onde — «o mundo das coisas existentes é reduzido ao mundo das interacções possíveis. A realidade é reduzida a interacção. A realidade é reduzida a relação.» — como afirmou Carlo Rovelli no seu livro “A realidade não é o que parece”.

Quando olhas para o Montejunto em Alenquer enquanto viajas na auto-estrada A1, contemplas a história do processo. Vários eventos energéticos dançaram com passos de devir e perecer ao longo do tempo para compôr a sinfonia do complexo fenómeno natural que deslumbra o nosso olhar, ou enche de sentimento o nosso caminhar ao trilhar pela encosta da montanha. Uma montanha contém em si a herança de milhões de anos de processos silenciosos que pouco se notam no nosso tempo de vida. Porém, todo o processo que tem um fim, finaliza, para dar origem a novos processos e assim permitir ao mundo evoluir. E poderá ser essa natureza perecível do processo que nos custa a aceitar uma visão de Deus em processo? Mas não era Jesus feito, como nós, do pó das estrelas?

A experiência do processo é uma síntese de experiências que nos abre à novidade. «A experiência — diz o teólogo australiano Denis Edwards alinhado com Whitehead — do incomensurável tamanho e abundância do universo, a experiência de unidade e inter-relacionamento de todas as coisas, a experiência de amizade, a experiência de compaixão e da luta partilhada pela justiça, a experiência de solitude, a experiência de perda e morte, a experiência dos limites e a experiência da transcendência do espírito humano, estas e muitas outras experiências abertas a mulheres e homens ao mistério que está no coração da existência humana no universo.» Por isso, se a realidade é processo, e o processo é na sua essência relacional, então, a realidade é relacional e isso faz toda a diferença para a nossa visão do mundo.


Imagem de James Wheeler por Pixabay