Ter. Abr 30th, 2024

70 ANOS DUDH | REFLEXÕES

1498-2018 Nos 520 anos da MIA

Lacerda Pais*

Certamente influenciados pela vontade real e do clero e, sobretudo, com uma enorme vontade de ajudar o próximo, um grupo de homens bons da pacata Aveiro resolveram criar, seguindo a novidade que vinha da Casa Real, na capela anexa à então igreja de S. Miguel com cerca de 50 m2, dedicada a Sto. Ildefonso, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro. A exiguidade das instalações levou a que a documentação da irmandade fosse guardada nas moradas dos mesários, existindo apenas referências externas de todo o século XVI. Todavia as cerimónias designadas no Compromisso e resultantes das obrigações de legados e benfeitorias foram decorrendo, sendo a maior parte das receitas proveniente de esmolas tiradas pelos mamposteiros, cuja autorização régia e dispensa de encargos data de 1502. O propósito era o cumprimento das catorze obras de misericórdia.

Com o crescimento da vila de Aveiro e já sob o domínio espanhol os irmãos entenderam que era a altura da Santa Casa possuir instalações próprias e condignas. Em 1596 o provedor Henrique Esteves da Veiga, cavaleiro fidalgo da Casa Real iniciou, junto da corte de Filipe II, diligências para o financiamento da sede e anexos. Assim em 1599 o provedor Pedro Tavares, recebido o auxílio régio, aceite a proposta de Gregório Lourenço e aprovada a localização na Rua Direita, prepara o início das obras que acontece no ano seguinte prolongando-se por mais de meio século. Sabe-se que, apesar do enorme esforço de angariação de esmolas e outros, a Santa Casa da Misericórdia de Aveiro não deixou de dar cumprimento às obras de misericórdia, atendendo os necessitados.

A existência de um livro com registo de entrada de doentes, datado de 1615, pode significar o início de assistência nas novas instalações anexas à igreja. O agora hospital atravessou dois séculos, guerras e tempos difíceis. Constitui-se a diocese de Aveiro, observam-se alguns conflitos entre o clero e a Misericórdia, com o terceiro Bispo a declinar ser sepultado nesta igreja onde estão os seus antecessores. Os irmãos sabiam que quando eram chamados para a mesa era para servir no cumprimento das obras de misericórdia.

Em Outubro de 1853 sendo provedor Francisco Tomé Marques Gomes é aprovada a construção de um novo hospital nos terrenos a sul da igreja, que foi inaugurado em Junho de 1856 ficando, até hoje, o nome de Hospital Novo para o edifício levado a hasta pública no princípio do século para angariar fundos para o Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro a que mais tarde deram o nome de Infante D. Pedro. A afluência de doentes ao Hospital Novo, em parte provocada pela cólera mórbus e a excelente qualidade dos serviços prestados levou a que logo no ano de 1883 fosse proposta a criação de uma nova unidade.

A inauguração do hospital dá-se em 1917 e em 1918 dá-se a epidemia do tifo que levou à construção do pavilhão de infeto contagiosas. Foram mobilizados todos esforços para o hospital canalizando todos os meios financeiros à sua disposição, alugando as suas instalações junto à igreja – aqui funcionou a Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira – havendo necessidade de deslocar bens patrimoniais, documentais e outros para a cave e sótão do hospital. Infelizmente o que veio a seguir ao 25 de Abril de 1974 foi de um enorme prejuízo a todos os níveis e principalmente pela lapidação de património aí armazenado e outro. À Santa Casa da Misericórdia de Aveiro restava a sua igreja. Nomeada uma Comissão Liquidatária esta dirigiu-se ao Senhor D. Manuel Trindade para entrega das chaves e, com a perspicácia de D. Manuel estas não foram aceites e a Santa Casa não acabou ali. Em 10 de Outubro de 1979 dá-se a eleição dos órgãos sociais sendo provedor Carlos Vicente Ferreira que dá seguimento ao trabalho da Comissão Administrativa que levará ao que somos hoje. A ideia da assistência hospitalar, promoção da saúde, prevenção da doença e reabilitação e integração estiveram sempre presentes nos eleitos que se seguiram, tendo sido criados serviços de fisioterapia, hidroterapia e assistência a demências, apresentados, em 2004 e 2009, projetos para unidade de cuidados continuados e colocada junto das entidades da saúde a nossa disposição para a resolução do grave problema de assistência às pessoas com demência. Tanto assim é que a Misericórdia, hoje, no seu Complexo Social da Moita, onde desenvolve respostas protocoladas com o Estado como meramente sociais, integra profissionais com licenciaturas em medicina, enfermagem, farmácia, psicologia, fisioterapia e outros, reconhecendo que a doença combate-se mas também se previne e que é muito importante melhorar a condição de saúde de quem acolhemos, mas também melhorar a sua qualidade de vida e o seu bem-estar.

Ao fim de trinta e seis anos (1981/2017) foi assinada a escritura da venda do nosso Hospital ao Estado, lembrando, no ato, a firme disposição desta Santa Casa tudo fazer para que à Comunidade Aveirense sejam prestados os melhores cuidados de saúde.

Graças ao esforço das duas centenas de colaboradores que nos apoiam e ao esforço dos irmãos e voluntários que nos acompanham tentamos proporcionar aos mais necessitados alem do conforto físico, através das valências desta Santa Casa da Misericórdia, o conforto da palavra.

*Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro

(Artigo que se insere no âmbito das comemorações do 70º Aniversário da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Plataforma “Aveiro Direitos Humanos” / Diário de Aveiro)