Dom. Abr 28th, 2024
Modos de interação entre ciência e religião 

“P”… [“Pautado…”]


Pautado pela Paz

Miguel Oliveira Panão*

Se a paz é uma pausa entre guerras, pautar a nossa vida pela paz seria viver o mais possível em silêncio. Não é o silêncio uma pausa prolongada? Depende. Pois, não me refiro a um silêncio exterior, mas interior. Existem pessoas que não dizem uma palavra com a sua voz, mas ficaríamos surpreendidos se pudéssemos amplificar o ruidoso ambiente interior. Uma paz que pauta a vida faz do silêncio interior aquele que cria espaço de escuta, compreensão e acolhimento sem qualquer pressão.

Quando estou diante do ecrã, ou vejo pessoas diante do seu ecrã, num silêncio exterior de quem presta atenção ao que vê, o mais provável é que o interior esteja saturado de informação e a paz não encontra espaço para nos ajudar a saborear a vida. Depois, com a entrada da realidade da inteligência artificial “dialogante” através, também, do ecrã, só o pensamento crítico poderá assegurar-nos sermos moldados pela ferramenta naquilo que escolhemos, em vez de sermos limitados nas escolhas por nos cingirmos ao que a inteligência artificial nos dá a escolher.

Há uma relação entre inteligência artificial e paz, mas estou a pensar na mais subtil e pouco falada. A relação que afecta a pausa entre as guerras interiores. Quem se meteu alguma vez dentro do turbilhão de uma grande onda sabe quão pouco podemos fazer para voltarmos à superfície e respirar. O mais sensato é aguentar, deixarmo-nos levar pela onda até que se dissipe na esperança de ainda sermos capazes de respirar. Surfar na onda da inteligência artificial implica ter os pés bem firmes na prancha dos valores para nos mantermos no exterior da onda, evitando ser engolidos por essa.

Como podemos crescer pessoalmente para sermos cada vez mais pautados pela paz da pausa interior? Existem muitas formas, mas recordo uma das mais simples e milenar — ler. Ler é muito mais do que procurar conhecimento ou lazer. Ler é uma forma de cuidar da nossa saúde mental. Entrar na mente de alguém que se lê, ser transportado para um mundo diferente ou encontrar consolo no entrelaçar das palavras de uma poesia, são formas de dar espaço a uma pausa interior que não gera ruído, mas conduz-nos no reencontro com a melodia do sentido e significado profundo da vida.

Um dia, o escritor inglês Robert MacFarlane recebeu um livro de Don de quem se tornou amigo em Pequim no Outono e Inverno do ano 2000. Durante dois anos, Don e Rob escreviam cartas um ao outro e partilhavam livros através do Atlântico. Um dia, Rob recebe uma carta de Don que lhe partilhava ter recebido o diagnóstico tardio de um cancro. Nada havia a fazer. E depois de Rob saber que a quimioterapia de Don era o pior lugar do mundo — a “Sala da Dor”, como lhe chamava, — escreviam-se com mais frequência e mais livros trocavam entre si. Entretanto, as respostas começaram a diminuir até que pararam. Um ano depois, Rob recebe um email de uma morada eletrónica que desconhecia. Era Rachel, a filha de Don que partilhava a morte do pai. Agradecia todas as cartas e livros que Rob tinha enviado e que mantiveram o seu pai feliz, mesmo sem conseguir responder. Dizia Rachel que — «Ler foi o que manteve o meu pai vivo até ao fim.» Não me custa imaginar a paz que Don sentia ao ler ou escutar as palavras que lhe liam quando as forças faltavam para segurar um livro.

As pessoas podem pensar que não têm tempo para ler, mas será isso verdade? Podem também pensar que ler custa por não estarem habituadas, causando alguma tensão interior em vez de paz. Mas o essencial será dar o primeiro passo e manter-se no caminho. Quanto mais lermos, mais vontade de ler temos e os períodos de pausa interior e de paz passam a fazer parte da experiência de tempo que fazemos.

Não consigo deixar de pensar que toda a guerra exterior tem origem no coração de uma ou mais vidas que não se deixaram pautar pela paz com pausas interiores ou não tinham quaisquer condições para isso. No início de cada ano que começa sempre com a celebração do Dia Mundial pela Paz, fico a pensar na celebração mais interior do Dia Mundial pela Pausa que traz Paz. O oitavo ponto do Decálogo do Tempo 3.0 no novo livro que publiquei diz — «Quem não pára uma vez por dia, pára um dia de vez.» — E muitas pessoas confundem parar com estagnar. Mas quem se deixa pautar pela paz sabe que a estagnação é somente uma ilusão. Pois, nadamos contra a corrente e parece que estamos parados. Que 2024 traga a serenidade que desenvolve em nós a sabedoria, começando, quiçá, por um bom livro que nos põe a viver interiormente em paz.


Miguel Oliveira Panão é Professor Universitário em Coimbra e autor de “Tempo 3.0 — Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo“. Para acompanhar o que escreve pode subscrever a sua Newsletter Escritos em https://bit.ly/NewsletterEscritos_MiguelPanao


Imagem de JULIO VICENTE por Pixabay