Dom. Mai 5th, 2024
João Gonçalves GASPAR (Mons). – S. Bernardo de Claraval – evocação. Aveiro: Edição da Fábrica de Igreja Paroquial da Freguesia de S. Bernardo, 2020.

 

Luís Manuel Pereira da Silva*

Uma feliz circunstância – a resposta ao convite para fazer uma palestra sobre a importância de cuidarmos da vida humana mais frágil – permitiu que recebesse das mãos do pároco de S. Bernardo, pe. Luís Barbosa, um exemplar do opúsculo sobre S. Bernardo de Claraval, em forma de ‘evocação’, da autoria do Monsenhor João Gonçalves Gaspar, da Academia Portuguesa da História e insigne membro do clero da diocese de Aveiro.

Li-o como quem é levado pela mão de um cicerone que conhece, com todos os detalhes, os meandros do tempo como se este pudesse ser eloquente como os recantos de um espaço familiar. O autor, Monsenhor João Gonçalves Gaspar, é, parafraseando um outro Bernardo, neste caso, o de Chartres (que Isaac Newton citou), como um gigante em cujos ombros nos encavalitamos, qual anões, para ver mais longe, tendo por óculos o seu próprio olhar.

Este é um livro escrito com o cunho que gosto de encontrar nos livros de história: não cultiva uma inócua neutralidade, mas parte, precisamente, da circunstância concreta para, daí, ler a história na sua relevância. O autor desta breve obra é português e aveirense. E é a partir daí que se lê a história de S. Bernardo de Claraval… Desse foco, é-nos oferecida a análise da grandiosa obra deste reformador cisterciense que, durante o século XII, contribuiu, de modo singular, para um processo de mudança que se repercute na Igreja, no mundo de então, na futura nação portuguesa e, por fim, na própria realidade aveirense.

É a esta luz que Monsenhor João Gaspar nos dá a perceber o ímpar contributo que, a partir de mosteiros cistercienses (seguidores da regra beneditina, baseada no lema ‘ora et labora’), S. Bernardo desempenha para a consolidação da nação portuguesa (veja-se a missão de mosteiros como o de Alcobaça, S. João de Tarouca, Salzedas, etc. e o dos templários para a reconquista cristã, no contexto da II cruzada para que muito contribuiu o próprio S. Bernardo), e, também, como a sua ação se torna visível inclusive no contexto da realidade que é, hoje, a sociedade aveirense. A título de exemplo, destaquemos a análise detida que o nosso autor faz da devoção na realidade aveirense, mas, também, um outro aspeto a explorar mais pormenorizadamente por quem possa deixar-se provocar: sabemos, pela pena do nosso Monsenhor João Gaspar, que foram mosteiros fundados pelos cistercienses, ao tempo de S. Bernardo, o de S. Cristóvão de Lafões (de que ainda restam sinais visíveis nesta povoação próxima de Oliveira de Frades – talvez a toponímia conserve alusão a este facto…), mas também o já desaparecido mosteiro de S. Tiago de Sever, fundado no mesmo ano da celebração do tratado de Zamora, 1143, considerado o documento com que se declara a independência de Portugal em relação a Castela. Esta referência deixa curioso o leitor que procura compreender a atualidade sem apagar as marcas da história. Constatar esta coincidência histórica permite vislumbrar a relevância das nossas terras para a interpretação afonsina da futura nação ainda em gérmen. Uma verificação que compromete e interpela e permite encontrar, na história, reptos para o futuro, um modo de saborear e tornar eloquente, para estes tempos, os dias passados, não já num registo de saudade e vã nostalgia, mas de provocação e esperança. Um registo que se confirma no modo como termina este opúsculo, repercutindo um ‘belo texto de S. Bernardo sobre o nome de Maria’, denso de horizonte e esperança: ‘Ó tu, quem quer que sejas, que te sentes longe da terra firme, arrastado pelas ondas deste mundo, no meio das borrascas e das tempestades, se não queres soçobrar, não tires os olhos da luz desta Estrela’. Um texto com que se conclui um retrato do homem, inteligente, sábio, líder, mas densamente espiritual, que, apesar dos limites físicos, se transcendeu pela sedução do Transcendente.

Em boa hora se decidiu a paróquia de S. Bernardo a publicar esta breve evocação do seu padroeiro. Este é mais do que um serviço à história. É um serviço pastoral e, por isso, de humanidade e à humanidade que precisa de saber quem é, donde vem, para poder saber que caminho percorrer. Pois, se a verdade é, como recordavam os gregos, não esquecer (alêtheia), recuperar a memória é caminhar no rumo da verdade.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura e autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’