Sáb. Mai 4th, 2024
Bioética e sociedade
(Parceria com o Centro de Estudos de Bioética)

Carlos Costa Gomes*

A História ensina-nos que a tecnologia é algo inato à atividade humana. Estamos sempre a inventar e a melhorar ferramentas para servir o ser humano. Agora as tecnologias – a Inteligência Artificial (IA) – que criamos estão a moldar-nos e a inventar-nos (Kuskis, A 2013). Nenhuma da tecnologia como a IA inventada até agora, pode mudar o homem integralmente.

Mas o que é que nos torna humanos?

O que nos torna humanos não é o matemático, nem mesmo o químico ou o biológico, mas o que nos envolve enquanto pessoas. Isto é, o que passa despercebido, o indizível, consciência, a capacidade da inteligência reflexiva em avaliar o bem e o mal das ações mediante a ponderação de valores morais. O sujeito, a pessoa, não é uma coisa; não é nem pode ser reificável, nem instrumentalizável e nem objetivável. A pessoa como fim em si mesma não comparável nem equivalente. A sua natureza, porque humana, adquire intrinsecamente a autonomia, a liberdade e a dignidade.

É em razão da capacidade da inteligência reflexiva que a pessoa sabe que tem a liberdade e autonomia para questionar a bondade, ou não, da tecnologia. O homem atual, se quiser dominar o confronto entre a IA e a Humanidade terá de usar as normas éticas básicas: ser exigentes na avaliação sobre a IA e ao mesmo tempo compreender que a sua missão não é a de impedir o progresso, mas humanizá-lo.

 

Como dignificar o trabalho na era digital – ver, julgar e agir

A compreensão sobre a exponencialidade da tecnologia e o que representa para o futuro da humanidade é fundamental. Temos que aprender a imaginar e depois a viver com as mudanças. No futuro imediato, que é o nosso, esperar para ver é tão mau como fazer sem pensar. Temos que ver o horizonte, pois o futuro é uma constante definição e não algo que simplesmente acontece. E ver o horizonte é ver o Céu a esbater na terra e ver a terra a entrar no Céu.  Significa que temos que olhar para a tecnologia e questionar sobre a sua necessidade e uso adequado. O tempo atual já não é o da capacidade de usar uma tecnologia, mas sobretudo como aplicar a ética na técnica; ou dito de outra forma que a técnica corresponda às exigências éticas da humanidade.

A técnica, “esta maravilhosa obra do espírito humano, porque, entre as maravilhosas invenções da técnica que, principalmente nos nossos dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas […], aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito humano abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens”[2]

O tempo atual obriga-nos a ver, estarmos despertos e atentos, emergir em cenários futuros, descobrir como seria viver nesse futuro, porque a tecnologia pode ser o paraíso ou o inferno, pelo que temos que ser cautelosos e perguntar o que está em jogo: o como, o quando, o quanto e para quem. O futuro não é uma resposta de sim e não, mas antes, depende. Se as perguntas do porquê e para quê forem ouvidas a tecnologia será mais equilibrada, mas para que isto aconteça é necessário perguntar.

A resposta passa por nos tornar melhores gestores da humanidade. Qualquer um de nós – um trabalhador, um líder empresarial ou qualquer político na sua condição representante público -, tem de aceitar esta tarefa e agir com responsabilidade, honestidade e verdade. Gerar confiança no presente e no futuro da humanidade, porque sem uma ética de confiança a tecnologia, a IA:

  1. A tecnologia sem ética condena a sociedade;
  2. Agir para impedir que as tecnologias não passem de bestiais a bestas, de forma a alcançar o justo meio de Aristóteles;
  3. Agir de forma a exigir dos que inventam e investem nas novas tecnologias ofereçam formas mais eficazes para reduzir ou limitar consequências indesejadas;
  4. Agir para que a tecnologia e a humanidade devam fazer parte dos planos de estudos da mesma sala de aula;

Para dignificar o trabalho temos que preservar uma clara distinção entre o que é real e o que é cópia ou simulação.

Qual o papel das organizações neste novo tempo e qual o modelo social que responde eticamente ao não-trabalho?

As organizações e instituições têm o dever ético de avaliar e julgar se esta tecnologia vai diminuir a humanidade. Avaliar e julgar se esta tecnologia irá promover a felicidade humana. Avaliar e julgar os efeitos colaterais involuntários e potencialmente desastrosos e verificar se esta tecnologia assumirá muito poder em si mesma. Por fim, é um imperativo ético da precaução de perceber se esta tecnologia vai servir o homem ou vai servir-se a si mesma. Dito de outra forma, se a tecnologia (IA) estará ao serviço do homem ou o homem ao serviço da tecnologia.

As organizações e instituições públicas ou privadas têm o dever ético da solidariedade avaliando, nesta perspetiva, a necessidade de moldar novos contratos sociais que abordem os efeitos negativos para humanidade. Por isso, não basta pensar uma ética mínima, que é a de acautelar o rendimento mínimo necessário, mas a partir de uma ética de máximos elaborar novo contrato social para compensar o não-trabalho. Uma ética de máximos que possa promover um diálogo transparente promova a confiança e a justiça como equidade. Tal ética de máximos deve partir dos seguintes pressupostos:

  1. Essas máquinas terão limites de horário de trabalho?
  2. Pagarão impostos?
  3. Pagarão taxa para Segurança Social?
  4. Provocarão mudanças no funcionamento da Segurança Social?
  5. Como pagar o não-trabalho das pessoas com trabalho das máquinas inteligentes?

 

Os cristãos e a evangelização do mundo do trabalho. O que fazer para que o trabalho humano seja uma fonte de realização humana?

O Evangelho é a palavra-chave, porque o extraordinário e completo conhecimento pessoal; a verdadeira medida do conhecimento, para o cristão, vem de Deus. Para se conhecer como se deve, não basta o conhecimento preso à terra e que da terra nasce. É necessário o amor que ajuda perceber o processo frágil do conhecimento, uma vez que não podemos conhecer verdadeiramente alguém ou alguma coisa, sem um processo humilde e frágil de procura e encontro e sem olharmos com os olhos que veêm de uma outra maneira essa coisa e essa pessoa.

O Evangelho é a palavra-chave porque nos dá uma luz nova que vem de fora e que se contrapõe à metáfora da luz que em nós mora, a luz da nossa pequena e insuficiente razão.

O Evangelho mostra que na pessoa que em nós mora, mora também uma outra pessoa que dá sentido à vida. A pessoa em si não é completamente realizada se não sentir que produz obra e que é co-criadora, com Deus, na realização do mundo”. “Tudo aquilo que é fruto do trabalho das obras humanas tem um sentido quase divino, que só os humanos conseguem dar a cada um desses atos, e que não passará nunca para uma máquina”.

A tecnologia (mesmo que reproduza o nosso cérebro, todo o nosso mundo emocional) nunca poderá dar sentido ao trabalho. Só a pessoa consegue. E esse continuará a ser o sentido profundo do trabalho, tenha o trabalho a configuração que tiver”.

A robotização industrial e a IA não são apenas inevitáveis; não podemos encarar este mundo tecnológico como uma fatalidade, mas olhar para a tecnologia como uma finalidade. A tecnologização não é nem pode ser uma fatalidade, mas sim um instrumento cuja finalidade é a de servir o homem.

A tecnologia e as ferramentas de inteligência artificial têm grandes virtualidades, mas também são passíveis de erros. Existe uma via entre o humano e a IA, onde o papel do ser humano é fundamental. Pois, se por um lado temos a responsabilidade ética de não impedir o progresso, por outro, temos o dever ético de perguntar sobre a sua finalidade: para quê, para quem, quando e como.


[1] Comunicação: “Dignificar o trabalho na era digital?” – XVII Congresso Nacional. Fátima, 8 e 9 de junho de 2019.
[2] IGREJA CATÓLICA – Decreto Inter Mirifica sobre os meios de comunicação social.

* Presidente do Centro de Estudos de Bioética | Pós-Doc e PhD em Bioética 

Imagem de Lukas por Pixabay