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António Bracons, Caminho, 2016

Manuel Alte da Veiga (Texto)

António Bracons (Foto) fasciniodafotografia.wordpress.com                         

(Excerto de uma carta ao seu tradutor polaco Witold von Hulewikz)

(Pessoalmente, considero uma das perspectivas mais profundamente humanas sobre o significado do cruzamento e implicação constantes entre morte e vida, do ponto de vista de um poeta produto do cristianismo mas que se confessa não cristão. O  poema seguinte enriquece este conceito)

«Nas Elegias (1), a afirmação da vida e a da morte revelam-se como uma coisa só. Admitir uma sem a outra, é… uma limitação que acaba por excluir completamente o infinito. A morte é o lado da vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos; precisamos de tentar realizar a consciência mais completa da nossa existência, que habita nestes dois domínios limitados e se alimenta de ambos constantemente e sem fim. A verdadeira forma da vida estende-se através dos dois domínios, o sangue do grande circuito corre pelos dois; não existe um para aquém nem um para além, mas sim a grande unidade na qual os seres que nos ultrapassam, os anjos (2), se sentem em casa… Nós, os homens daqui e de hoje, não estamos satisfeitos nem um único instante no mundo do tempo; nem nos fixamos nele: transbordamos sem cessar ao encontro dos homens de outrora, ao encontro da nossa origem e ao encontro daqueles que parecem vir depois de nós. … A natureza, as coisas da nossa intimidade e as coisas que nos servem são provisórias e caducas, mas também são, durante todo o tempo em que estamos aqui, a nossa possessão e a nossa amizade… Portanto, não se trata de denegrir ou rebaixar tudo o que é daqui, mas antes, precisamente pelo seu carácter provisório, que é o nosso, de apreender estes fenómenos e estas coisas, com a mais íntima compreensão possível, e de as transformar. Nós somos as abelhas do Universo. Sugamos perdidamente o mel do visível para encher a grande colmeia de oiro do Invisível…»

 

Notas do tradutor:

  • As ELEGIAS DE DUÍNO são provavelmente a obra maior de R.M.Rilke. Existe uma tradução bilingue em português por MARIA TERESA DIAS FURTADO, Assírio & Alvim, 1993.
  • Seres superiores, sem conotação estritamente religiosa, que já vivem, no Invisível, a suprema realidade de todas as coisas visíveis.

Aveiro, 3 Fevereiro 2017.

Tradução de Manuel Alte da Veiga, a partir da introdução a R.M.Rilke por RENÉ LASNE, Anthologie bilingue de la poésie allemande, de Heine à nos jours, Marabout Université, Paris, 1967.

 

DO «LIVRO DA HORAS» DE RAINER MARIA RILKE

 

Senhor, a cada um de nós, dá a sua própria morte.

Aquela morte que desabrocha desta vida

Onde conhecemos o amor, a inteligência e a miséria.

 

Nós somos apenas o revestimento e a folhagem;

A grande morte, que cada um de nós traz dentro de si,

Ela é que é o fruto, o centro à volta do qual giramos.

 

É por esse fruto, que as raparigas vão surgindo

Em melodia, como árvore irrompendo dum alaúde,

E os rapazes anseiam por se transformar em homens;

E as mulheres ajudam os adolescentes

A suportar as angústias que só a elas confiam.

 

É por esse fruto que tudo o que os olhos viram

Se torna eterno, mesmo o que vem do mais longínquo passado

E todo aquele que tenha formado ou construído alguma coisa

Tornou-se Mundo à volta desse Fruto, foi gelo e foi degelo

Abateu-se sobre ele como vento e sobre ele lançou todo o brilho.

 

No Fruto se dissolveu todo o calor

Dos corações, e dos cérebros o branco ardor-:

Mas os teus Anjos passam em bando como aves,

E não encontraram nenhum fruto amadurecido.

 

 

 

NOTA: Trabalhei esta tradução, com muitas e muitas tentativas, a partir do texto alemão, numa edição bilingue, mas com independência da tradução francesa: Procurei transmitir a força poética, a profundidade e congruência de ideias, que descubro no texto original de Rilke. Usei a seguinte obra: LASNE, René, anthologie bilingue de la poésie allemande – de Heine à nos jours .Marabout université, 1967.

Aveiro, 15 de Março de 2017. Manuel Alte da Veiga.

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