Sáb. Mai 4th, 2024

Um olhar sobre o património | A pretexto dos 600 anos da catedral 


 

António Leandro*

 

A profícua digressão que o Infante D. Pedro fez pela Europa, apesar de se ter prolongado apenas por três anos, possibilitou-lhe efetuar uma regência durante a menoridade de D. Afonso V (desde os seis aos catorze anos), filho do irmão D. Duarte que faleceu prematuramente em 1438, que foi ao encontro da política e cultura humanista europeia que o infante tanto defendia e a qual conheceu bastante bem. Por outro lado, a regência angariou-lhe muitos inimigos, nomeadamente na nobreza que viram perder a sua força em favor do poder régio, situação que era comum a muitos outros Estados europeus, nomeadamente na da Península Ibérica, nos Estados da Península Itálica e ainda na Europa Central. Para aumentar a tensão da sua governação, D. Pedro teve conflitos com D. Leonor, esposa de D. Duarte, pois esta queria assumir o poder, tal como o seu esposo tinha deixado prescrito em testamento, sendo apoiada pelas hostes da nobreza. Conquanto, mercê do apoio popular, nomeadamente da burguesia, mas também da dita nova nobreza, muita dela nobilitada por confirmação real desde D. João I, e contando ainda com o apoio de muitas cidades e concelhos, como o caso de Aveiro, representado por João Gonçalves Homem e João Pacheco[1], D. Pedro viu confirmada a sua regência nas Cortes de Lisboa em dezembro de 1439, levando ao declinar das pretensões da viúva rainha que acabou por regressar à sua origem, Aragão.

Anteriormente, nas Cortes de Torres Novas, em novembro e dezembro de 1438, tinha-se chegado a um acordo de governação partilhada entre D. Leonor e D. Pedro, proposta de mediação apresentada pelo infante D. Henrique, Duque de Viseu, devido à grande divisão entre os decisores. Todavia, mais tarde, o apoio do infante D. João, um dos adelfos da Ínclita Geração, ao seu irmão D. Pedro reforçou a pressão do duque de Coimbra em exercer a regência sozinho. Neste período de cerca de um ano, muitos problemas palacianos se desenrolaram com exonerações e nomeações de cargos, dependendo das fações apoiadas, e ainda se assistiu, entre os exércitos apoiantes das duas causas, a pequenas batalhas, mais propriamente cercos, nomeadamente nas regiões do Crato, Belver, entre outras, ou seja, nos territórios pertença da Ordem do Hospital, apoiante de D. Leonor. Contudo, a 29 de dezembro de 1441, D. Leonor abandonaria Portugal em direção ao seu reino, procurando apoio à sua causa regente na sua família real de Aragão. Acabaria por falecer em fevereiro de 1445, em Toledo. Só em 1456, as suas ossadas seriam tresladadas para o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, por intermédio do seu filho, D. Afonso V, já em pleno exercício monárquico[2].

O Infante, enquanto regente do reino, foi representante da burguesia e da nova nobreza nobilitada, com formação e experiência, percebendo que estes grupos poderiam ser o motor de desenvolvimento económico do país à semelhança das outras economias europeias, efetuando para isso reformas nas finanças e, à imagem do novo espírito humanista, cerrou fileiras à autoridade senhorial, almejando centralizar o poder, reformou a administração, preocupou-se com a formação do clero devido à renovação das doutrinas eclesiásticas que estavam a vogar nos estados mais abertos aos novos ideais da época moderna e reformou a Universidade. É, também, neste período que Portugal se lança verdadeiramente na epopeia dos Descobrimentos Marítimos, esteando o seu irmão, o Infante D. Henrique, Duque de Viseu, nas tarefas das viagens marítimas[3], o qual tinha sido nomeado governador de Ceuta em 1416. D. Pedro, ao contrário da velha nobreza guerreira, defendeu a exploração da desconhecida costa africana e o abandono do norte de África, inclusive da praça de Ceuta em troca do seu irmão mais novo, D. Fernando, O Infante Santo, cativo dos muçulmanos no desastre da Batalha de Tânger, em 1437, acabando por falecer em Fez no ano de 1443. D. Pedro sempre se mostrou contra aquela conquista de Tânger e em abril de 1440 enviou uma expedição, comandada por D. Fernando de Castro[4], o qual se fez acompanhar pelo seu filho D. Álvaro de Castro, futuro 1º Conde de Monsanto, para acordar a troca de Ceuta pelo seu irmão. Esta expedição foi atacada, perto do cabo de São Vicente, por uma carraca genovesa, levando à morte de D. Fernando de Castro, tendo o seu filho D. Álvaro de Castro, assumindo o comando[5]. Esta ato belicoso, a par das exigências desconfiáveis do vizir Oatácida do Magrebe, impediu o intento de D. Pedro[6]. Por outro lado, demonstra a importância para todos os povos mercadores do sul da Europa, fundamentalmente para os italianos, não só de Ceuta, mas, também, do norte de África para o comércio no Mediterrâneo e ainda em termos religiosos na luta contra os mouros. A preocupação do regente com as questões comerciais e com os seus portos ficou bem patente na missão que entregou a D. Álvaro de Castro de juntar uma armada, apoiada pelos habitantes das póvoas costeiras, para combater os corsários que “… andavam a roubar navios portugueses, castelhanos e outros que vinham comerciar no Reino…”[7]. Segundo Alfredo Pinheiro Marques, foi no período de regência de D. Pedro que os descobrimentos da costa de África Ocidental se efetivaram verdadeiramente, ou seja, que se efetuaram viagens no desconhecido a sul do Cabo Bojador, pois até aqui já a terra estava cartografada: “a verdadeira fronteira era – como sempre são as fronteiras nesta época – uma extensa área de rarefacção logo imediatamente a sul: a desolação desértica e inóspita dos litorais saarianos da Mauritânia. Esses extensos litorais, onde era penosíssimo navegar, e de onde era difícil regressar (contra os ventos contínuos de Nordeste), foram ultrapassados a partir de 1441, em plena regência do Infante D. Pedro”[8]. O mesmo autor afirma ainda que foi por ação de D. Pedro enquanto regente, em 1439, que o povoamento dos Açores foi realizado através da vinda de flamengos. Este processo deveu-se à proximidade que tinha com a sua irmã D. Isabel, Duquesa da Borgonha e Condessa da Flandres, casada com Filipe III da Borgonha, com quem o infante também mantinha boas relações[9]. Por seu lado, Douglas Lima afirma que já em 1433, ano em que D. Duarte sobre ao trono já havia muitos flamengos em Portugal e que as relações entre estas duas regiões já era firma[10], desconhecendo-se efetivamente o papel que desempenhou D. Pedro enquanto esteve na corte de Filipe III. Todavia, é o mesmo autor que assevera que a regência de D. Pedro “… permitiu que reforçasse os laços que ligavam Portugal à região da Flandres”[11], o que de certo modo vai ao encontro da ideia de Alfredo Pinheiro Marques.

Para alcançar os seus outros três objetivos, D. Pedro empreendeu o casamento de sua filha, D. Isabel, com o futuro monarca português, o que viria a concretizar-se a 6 de maio de 1447; entregou a direção dos exércitos a seu filho, D. Pedro, O Condestável; e coligiu as Ordenações Afonsinas com o intuito de “… nivelar a Pátria com as outras nações, onde o sistema feudal acabara os seus dias ou apressadamente agonizava”[12]. Nos anos de regência, D. Pedro não se manteve nos principais locais habituais de residência da corte (Lisboa, Santarém e Évora), deslocando-se por outros lugares do país, mormente pelo seu ducado e senhorios, tendo o futuro monarca acompanhado o seu tio, tal como esteve presente nas cortes convocadas pelo regente, entre 1440 e 1447, em Lisboa, Torres Vedras e Évora[13]. Quando o Infante entregou o poder ao seu sobrinho, nas Cortes de Lisboa em 1446, não obstante de inicialmente se manter como conselheiro do jovem rei a pedido do próprio, a nobreza fomentou, por todos os ardis, intrigas de forma a D. Pedro perder o poder que possuía junto do novo monarca, tendo este, supostamente, dispensado os seus préstimos nos inícios de 1448.

Na sua longa viagem moldou o seu espírito aos novos ideais e a uma visão cosmogónica bastante alargada, tendo adquirido outros hábitos e absorvido novas práticas que eram comuns no estrangeiro: preocupou-se com a administração efetiva do seu ducado e dos seus senhorios e atendeu às solicitações das suas comunidades, procurando colocar nos diversos territórios pessoas da sua confiança que revelassem o saber e a mentalidade moderna alvitrada nas suas obras anteriormente analisadas. Mesmo no período de regência do reino nunca descurou as suas preocupações e obrigações para com as suas terras e os seus habitantes, “posto que D. Pedro nunca tenha deixado de se deslocar às terras do seu ducado mondeguino, notamos que no ano de 1445 as suas estadias na zona de Coimbra, Tentúgal e Montemor-o-Velho, estendidas, ainda, a Penela e a Aveiro, foram particularmente alongadas”[14], tendo estanciado em Aveiro entre 14 de julho e 18 de agosto desse ano[15]. Do mesmo modo, teve os seus próprios artistas, tal como seu pai também tinha tido, numa clara atitude mecenática típica da mentalidade humanista. Protegeu-os, patrocinou obras e concedeu mercês, ou confirmou as já concedidas anteriormente, como por exemplo ao pintor António Florentin e a Pero Affonso Gallego, o qual já tinha trabalhado também para seu pai[16]. Outros artistas trabalharam para o Infante, como Luís Dantas, Lourenço Martins e Mestre Pedro, contudo o seu pintor de câmara foi Afonso Gonçalves[17] e, além destes, também escultores, ourives, calígrafos, mestres de obras e cronistas produziram obras de sua encomenda[18]. Embora nem Pedro Dias nem Francisco Pato Macedo, nas obras citadas, se refiram especificamente a arquitetos, somos da opinião que alguns fariam parte do seu séquito artístico, pois, como se sabe, patrocinou e encomendou muitas obras arquitetónicas e para tal teria os seus arquitetos e mestre de obras[19]. Tomemos como exemplos algumas obras arquitetónicas que o infante D. Pedro patrocinou como: o seu Paço em Tentúgal, a igreja de Santa Maria de Mourão na mesma vila; o Convento dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia em Aveiro, a continuação das obras da muralha nesta mesma vila; o restauro da igreja de São Miguel de Penela; protegeu o Convento franciscano de Tentúgal, instituiu uma capela no Mosteiro de Odivelas e preocupou-se com obras de carater público, como muros, fontes, pontes e até imaginou um aqueduto na capital do seu ducado[20]. Para a realização destas e de muitas outras obras o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e Senhor de Aveiro teria de ter no seu manancial de artistas também arquitetos.


 

Imagem: Igreja de Santa Maria de Mourão (atual Igreja Matriz de Tentúgal)

 


Retirado de: https://www.visitarportugal.pt/coimbra/montemor-velho/tentugal/igreja-matriz

[1] MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; 1979. p. 56.

[2] Sobre esta profunda e complexa questão que dividiu o país nos anos de 1438 a 1442, pelo menos até as Cortes de Évora deste último ano terem confirmado a decisão das Cortes de Lisboa de 1439, consultar GOMES, Saul António – Reis de Portugal. D. Afonso V… pp. 44-55.

[3] FERREIRA, Maria Emília Cordeiro – “Pedro, Infante D”. em Dicionário de História de Portugal, vol. V. Direção de Joel Serrão. Porto: Livraria Figueirinhas; 1985. pp. 29-31. GASPAR, João Gonçalves – A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490). Aveiro. Edição da Câmara Municipal de Aveiro. 1988. 2ª edição. pp. 20-22.

[4] D. Fernando de Castro foi 1º Senhor de Ançã e 1º Senhor de São Lourenço do Bairro, Morgado do Paul de Boquilobo e da Quinta da Penha Verde em Sintra.

[5] BORGES, Marco Oliveira – “D. Álvaro de Castro (1º Conde de Monsanto) perante os desafios da expansão portuguesa no século XV”. em Revista de História da Sociedade e Cultura, n.º 14. Coimbra: Centro de História da Sociedade e Cultura da faculdade de Letras da Universidade Coimbra; 2014, pp. 97-98.

[6] COSTA, João Paulo Oliveira e – Antropónimos, PEDRO, Infante D. (1392-1449), p.1. Compulsado em http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content.php?printconceito=922 (versão em pdf)

[7] [7] BORGES, Marco Oliveira – “D. Álvaro de Castro (1º Conde de Monsanto) perante os desafios da expansão portuguesa no século XV”… pp. 89-90.

[8] MARQUES, Alfredo Pinheiro – A maldição da memória do Infante D. Pedro e as origens dos Descobrimentos Portugueses. Figueira da Foz: CEMAR-Centro de Estudos do Mar; 1994. p. 86.

[9] MARQUES, Alfredo Pinheiro – A maldição da memória do Infante D. Pedro e as origens dos Descobrimentos Portugueses… p. 86

[10] LIMA, Douglas Mota Xavier – O Infante D. Pedro e as alianças externas de Portugal (1425-1449). Dissertação de mestrado em História apresentado no Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Niterói: S/E; 2012.  Retirado de http://www.historia.uff.br/stricto/td/1590.pdf pp. 160-162.

[11] LIMA, Douglas Mota Xavier – O Infante D. Pedro e as alianças externas de Portugal (1425-1449)… p. 163.

[12] GASPAR, João Gonçalves – A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490)… p. 22.

[13] GOMES, Saul António – Reis de Portugal. D. Afonso V. Direção de Roberto Carneiro. Coordenação científica de Artur Teodoro de Matos e João Paulo Oliveira e Costa. Mem Martins: Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa; 2006. p. 57.

[14] GOMES, Saul António – Reis de Portugal. D. Afonso V… p. 57.

[15] MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico… p. 234.

[16] DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”. em Biblos, vol. LXIX. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; 1993. pp. 495-496.

[17] DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”… pp. 496-497.

[18] DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”… pp. 498-501 e MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”. em Biblos, Vol. LXIX. Coimbra: F.L.U.C.; 1993. p. 461.

[19] LEANDRO, António Cruz – “O Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia”. em Memórias gráficas dos antigos conventos e mosteiros de Aveiro. Direção de Francisco Messias Trindade Ferreira e Porfírio António Correia. Aveiro: Edição do Arquivo Distrital de Aveiro; 2017. pp. 54-55.

[20] Conferir esta ideia em MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”… pp. 459-490.


*Licenciado em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Mestre em Património e Turismo pela Universidade do Minho; Professor; Formador de professores na área da História de Arte; Investigador de história e património local, nomeadamente de Arte Sacra, escrevendo assiduamente artigos para diversas publicações, como as revistas Terras de Antuã, Albergue e Cucujanis.