Modos de interação entre ciência e religião
π [Pessoas & Ideias]
π.4 ~ Elizabeth e o Feminino
Miguel Oliveira Panão
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Diante dos efeitos devastadores da intensificação dos fenómenos climáticos, como os furações, as chuvas e as secas, a ecologia é um dos poucos tópicos que mais une a ciência à fé e onde o diálogo mais se aprofundou nos últimos tempos. Embora a ciência tenha surgido como a resposta do ser humano ao sentido curioso que provém da sua consciência, o nascimento da ciência moderna coincide com a inversão do sentido da natureza como mestra e nós seus aprendizes, para um sentido de nós como seus mestres e a natureza como nossa serva. Elizabeth A. Johnson é uma teóloga que oferece a ideia de um maior equilíbrio entre a visão masculina e a feminina da realidade para compreender melhor as raízes da crise ecológica que vivemos e da qual está a ser difícil sair.
A visão antropocêntrica do relacionamento entre o ser humano e a natureza foi identificada como uma das raízes da crise ecológica, mas Elizabeth faz uma precisão. O problema não é a visão centrada na humanidade (antropo-), mas no homem (andro-), ou seja, o problema real está no androcentrismo que hierarquiza as visões masculina e feminina da realidade.
Na raiz de uma vida mais ecológica estão três relacionamentos: 1) os seres humanos com a natureza; 2) os seres humanos entre si; 3) e os seres humanos com Deus. Mas quando dizemos “seres humanos” não podemos esquecer uma polaridade criativa entre o masculino e o feminino, que a nossa cultura explora ainda pouco pelo valor que realmente tem. Elizabeth diz que — «nós procuramos uma visão unificante que não estratifica o que é distinto em camadas superior-inferior, mas reconciliá-las em relacionamentos de mutualidade. Escutemos a sabedoria das mulheres, discernir o nosso parentesco com a terra, e recordar o Espírito, como passos vitais na direcção de uma ética ecológica e espiritual.»
Segundo Elizabeth, a experiência que as mulheres fazem de si mesmas tende a uma incorporação fundamental com os outros, acentuando a relacionalidade como um aspecto fundamental na compreensão que cada um de nós tem de si próprio. O modo como nos vemos, e vemos os outros, está ainda demasiado estruturado. Basta pensar como nos vários COP (conferência mundial dedica às alterações climáticas) se evidenciam as diferenças entre políticos e o povo, quando os políticos são tanto povo quanto todos os que não trabalham na política. A realidade mais profunda é a da «independência relacional, liberdade na relação, individualidade totalmente relacionada» — diz Elizabeth, de tal forma que isso influi na visão que temos do mundo e respectivas implicações para a que temos de Deus.
«Se a relação está no coração do universo, se a mutualidade é uma excelência moral, então, a divindade de Deus não consiste em ser superior ou estar contra, mas expressa-se em si mesma numa livre aproximação e num conectar-se em relação mútua.»
A intuição da interconectividade entre todas as coisas é um contributo fundamental da experiência feminina de vida que desconstrói os dualismos hierárquicos que têm dominado o nosso modo de pensar ecológico, em vez de dar lugar a um círculo de mútua interconexão entre tudo o que se relaciona no mundo. Aliás, as reservas que sempre tive em relação ao modelo do ser humano com “administrador responsável” (ainda presente na Laudato Si’ n. 116), devem-se ao facto de ser uma expressão que mantém a estrutura hierárquica, em vez da comunitária que mais se aproxima da realidade e que uma visão feminina pode ajudar a interiorizar. Como afirma Elizabeth —
«Se a separação não é o ideal, mas a conexão; se o dualismo não é o ideal, mas o abraço relacional da diversidade; se a hierarquia não é o ideal, mas o mutualismo; então, o modelo de parentesco é o que mais se aproxima da realidade. Esse vê os seres humanos e a terra, com todas as suas criaturas, intrinsecamente relacionados como companheiros numa comunidade de vida. Pela razão de estarmos todos mutuamente interconectados, o florescimento ou dano feito a um, em última análise, afecta todos. Esta atitude de parentesco não mede as diferenças numa escala de dignidade ontológica mais elevada ou mais baixa, mas aprecia-as como elementos integrais no robusto prosperar do todo.»
O sentido de comunidade que provém da visão feminina está inscrito na realidade ao seu nível mais profundo. Todos provimos do mesmo pó das estrelas (até Deus quando se faz homem em Jesus). Todos somos irmãos, não apenas os que pertecem à mesma espécie. Todos perfazemos uma comunidade de vida mutuamente interdependente que impulsiona a evolução da história do planeta e do universo. A ideia de Elizabeth de reconhecer e explorar a visão do feminino para melhorar o diálogo entre ciência e fé é típico do ser materno. Aquele timbre feminino que procura sempre reconciliar os que, por vezes, esquecem serem irmãos.
Bibliografia:
Elizabeth A. Jonhson, “Women, Earth, and Creator Spirit”, Paulist Press, 1993.