
Homilia da ordenação do Diácono Rafael
1. Ação e contemplação
Jesus explica as exigências do ser discípulo apresentando três casos de vocação ou discipulado: a primeira condição para seguir Jesus é o desprendimento, porque tal como as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, assim os discípulos são convidados a terem um coração livre e sem laços que os prendam; por outro lado, o chamamento exige uma resposta urgente – “deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus”; a decisão tem de ser irrevogável, sem olhar para trás, porque “quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus”.
Para valorizarmos estas exigências, temos de ter presente que Jesus acaba de tomar a decisão de se dirigir para Jerusalém, que O levará à Paixão. O discípulo segue o mesmo caminho do mestre. Estas exigências, inaceitáveis numa mentalidade legalista, adquirem todo o sentido para quem optou pelo seguimento de Jesus. A nossa docilidade ou resistência em aceitar essas exigências pode servir de termómetro que marque a nossa atitude de decisão.
A parábola do Bom Samaritano, que escutámos no domingo passado, falava de como deve ser o amor ao próximo, enquanto o evangelho de hoje apresenta o amor a Deus como resposta à sua Palavra. Para além do sentido estrito do texto (o trabalho de Marta e a escuta de Maria), não podemos fazer uma comparação entre as duas irmãs, de modo que aceitemos uma e desprezemos a outra. De facto, se convidaram Jesus, a cortesia exige as duas situações: atender pessoalmente na conversação e preparar-lhe a mesa. É a amizade, simbolizada na conversação, que dá sentido e valor à mesa.
A intenção do texto é esta: quando se tem a dita de receber Jesus, o escutá-lo tem de ser a primeira preocupação, não esquecendo as necessidades dos irmãos.
Se tomamos o episódio como paradigmático, facilmente podemos concluir que para a implantação do Reino são necessárias a ação e a contemplação, sendo esta a que dá sentido à ação. Não há oposição entre uma e outra; estão intimamente relacionadas. No capítulo seguinte, o evangelista S. Lucas, continuando a sua catequese sobre o discipulado, apresenta Jesus a ensinar a rezar os seus discípulos. Não há ação sem contemplação e a nossa vida alimenta-se da oração.
2. O serviço, a oração e o celibato
A Oração da Ordenação dos diáconos diz-nos como deve ser a forma de vida daquele que é ordenado: “Brilhem nele as virtudes evangélicas: a caridade verdadeira, a solicitude pelos doentes e pelos pobres, a autoridade modesta, a retidão perfeita e a docilidade à disciplina espiritual”.
Querido ordinando Rafael:
No dia a dia, constatamos que há muitas coisas a fazer e esta preocupação e afã apoderam-se de todos nós, mas por nossa culpa. Embora tenhamos muitas coisas a fazer, temos de distinguir o que é mais urgente ou o mais necessário.
Após a instituição da Eucaristia, S. Lucas refere que entre os discípulos de Jesus se gerou uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, deixando de lado as aparências, vai direto ao essencial. Estabelece uma antítese entre o poder político e a autoridade no novo povo de Deus. Mais do que honras, temos de procurar e valorizar o serviço. O maior tem de se igualar com o mais jovem, e o que tem autoridade tem de se comportar como aquele que serve. A atitude de Jesus “Eu estou no meio de vós como quem serve” (Lc 22,27) evoca o lema que escolheste para este dia: “Não nos anunciamos a nós próprios, mas ao Senhor Jesus Cristo, e somos vossos servos por causa de Jesus” (2Cor 4,5).
A alegria da oração cristã vem do Espírito, que nos garante que somos filhos, e, portanto, nos permite falar como filhos. A oração, por sua natureza, tende a abraçar todo o corpo de Cristo. É, portanto, uma oração da comunidade; não é uma soma de orações individuais, mas um acontecimento novo, no qual a oração de cada um morre na oração comum e ressurge como única oração. Este é o sentido da liturgia das Horas, que hoje te comprometes a rezar pelo povo de Deus. É o Espírito que nos permite sair de nós e pôr a nossa oração privada em segundo plano, para que viva a da fé da comunidade. A verdadeira oração cristã é a que põe a nossa vida nas mãos de Deus, a que nos faz morrer em Deus. A continência perfeita e perpétua, por causa do Reino dos Céus, é sinal e estímulo da caridade pastoral e fonte de fecundidade espiritual na Igreja e no mundo (cf. PO 16).
Jesus está connosco cada vez que nos deixamos mover pelo evangelho, cada vez que a nossa vida é evangelho testemunhado; Jesus está connosco, a sua Igreja, quando mergulhamos no poder do Pai, do Filho e do Espírito. Jesus está connosco, com a Igreja, quando continuamos a sua missão na nossa vida e, como sal da terra, tornamos possível, à nossa volta, a experiência de discipulado.
Quando contemplamos estas exigências, podemos ter a tentação de afirmar: «Senhor, não sou capaz». Adoremos o Senhor que se apresenta com exigências tão grandes, que nos fazem sentir verdadeiramente que tudo isto não depende de nós, mas que o Senhor está connosco. Quando reconhecemos que estas exigências são demasiado pesadas, já começamos a perceber o sentido do poder de Deus. Um Deus que nos retira de tudo o que é o nosso programa feito à nossa medida, e não à medida de Deus, diante do qual nos sentimos perturbados, carentes, devedores e pobres, então o evangelho começa a entrar em nós.
Hoje damos graças a Deus por tantos e bons sacerdotes que serviram esta comunidade cristã de São Salvador de Ílhavo, lembrando os que aqui nasceram e os que aqui exerceram o seu ministério. Nesta corrente de graça, tu és mais um deles. Pessoalmente, não posso deixar de lembrar o bispo D. António dos Santos, vosso anterior pároco, que, na diocese da Guarda, me ordenou sacerdote e esteve presente na minha ordenação episcopal. O mesmo se diga do Padre Manuel Cartaxo, nos quase vinte e cinco anos que viveu connosco em presbitério, também na Guarda.
Maria disse o seu “sim” ao anjo que a convidava para ser Mãe de Jesus e Mãe da Igreja. Pedimos-lhe que ela esteja muito presente ao longo da tua vida e, com ela, aprendas a ser discípulo do seu Filho Jesus.
Amen.
Ílhavo, 20 de julho de 2025.
† António Manuel Moiteiro ramos, Bispo de Aveiro