As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
[O texto introdutório pode consultar-se aqui.]
– 35. Conclusão. – E depois de tudo, a conclusão. Terminámos o trajecto inicialmente proposto: olhar as propostas constantes dos diferentes projectos de revisão constitucional naquilo em que incidem sobre o (i) preâmbulo à Constituição, (ii) os seus princípios fundamentais, e (iii) a respectiva parte I, relativa a direitos e deveres fundamentais (art. 79.º e ss.).
Terminado tal percurso, resultará mais claramente o que logo a princípio foi antecipado: que não era tanto o espírito de «revolução» do texto constitucional que as movia, mas de seu desenvolvimento e reforma (n.º 4). Dá-se, na verdade, como que um certo estreitamento do «imaginário político», que impede que sequer se intua a possibilidade de organização política da sociedade em termos diferentes dos característicos de um Estado moderno, esse ente que assume o papel de grande moderador, dirigente e transformador da ordem social (que essa configuração adira à própria realidade contemporânea desse mesmo Estado é uma outra questão). Neste ponto parece haver total convergência entre as várias forças políticas. Não se pode negar a existência de alguma divergência, até acentuada, quanto ao sentido a imprimir àquela ordenação. Mas sem nunca colocar em causa a convergência de princípio.
Em defesa desta condição, pode acertadamente dizer-se que, porventura, um procedimento de revisão constitucional não será o contexto mais adequado para um debate sobre grandes opções políticas. Talvez as grandes alterações não peçam sequer debate, mas apenas acção revolucionária: uma acção que, justamente, inaugura um novo discurso destinado à sua própria legitimação, um discurso porventura sob a forma de uma constituição. Cada constituição estará, portanto, comprometida com uma certa ideia do político, e só poderá ser alterada na medida em que esse comprometimento fundamental não seja colocado em causa.
Tudo isto parece acertado. Mas entre a petrificação e a ruptura totais há muitos pontos de permeio, cada um deles na tensão entre a continuidade e a mudança, por intermédio dos quais se pode oferecer uma nova ordem às instituições sem que haja uma sua solução de continuidade. Ora: não se detecta, nestes projectos de revisão constitucional, nenhuma tensão fundamental. Há, reconhece-se, algumas propostas em matérias polémicas e aparatosas, algumas delas até de enorme relevo, e que não devem ser secundarizadas. Mas, ainda assim, insiste-se: não se divisa qualquer tensão a respeito da forma como deve ser ideada a ordenação do fenómeno político. Onde não há tensão, é também difícil haver envolvimento.
Nalguma medida, esse estreitamento do «imaginário político» tem consequências no plano antropológico. Que ideia de cidadão projecta o texto constitucional? Que estatuto lhe concede? Para que se dá a organização política da sociedade? Uma parte do espírito do tempo parece ter sido especialmente bem captado pelo Bloco de Esquerda, quando propôs que ao «desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade», se antepusesse como fim prioritário da política da juventude o «bem-estar». E, mais recentemente, a actual líder elevou a mote da respectiva acção política geral a promoção da «vida boa». Parece ser, realmente, uma cultura de procura do «bem-estar», e de um Estado que o garanta – e que capte recursos para o efeito, e que defina o tipo de bem-estar que entender dever prestar, e que segmente diferentes categorias de bem-estar, e que modere a respectiva prestação, e que eduque a sua população a estar bem com o que lhe é fornecido, etc. –, a servir de paradigma incontestado à ordenação política.
A muitos, tudo isto poderá parecer pouco. Mas não é realmente fácil configurar alternativas. Testemunha-o, na verdade, a ausência de um relevante debate público que arrisque insuflar um pouco de vida na estruturação básica da vida política.
– Fim –
Imagem de Valentin Baciu por Pixabay