João Manuel Duque*
Certo programa moderno de secularização previa e prometia o fim de toda a atividade religiosa nas sociedades ditas avançadas. Atualmente, em contexto que muitos chegam a denominar “pós-secular”, constatamos que esse desaparecimento não teve lugar; pelo contrário, mesmo as sociedades mais atingidas pelo referido programa de secularização, como é o caso das sociedades urbanas do hemisfério norte, são palco de intensa atividade religiosa. No entanto, as modalidades dessa atividade revelam significativas diferenças, em relação à sua configuração em ambiente pré-moderno ou mesmo em ambiente moderno. Nas sociedades denominadas tradicionais – incluindo as sociedades ocidentais – existia maior uniformidade religiosa, mesmo quando essa uniformidade assumiu características de contestação do religioso ou pelo menos de indiferença. Todos nos recordamos, ainda, da predominância quase absoluta do cristianismo nos contextos em que crescemos, mesmo quando os nossos contemporâneos se foram manifestando, cada vez mais, não praticantes, não crentes ou mesmo antirreligiosos.
Embora em graus diferentes consoante os países e as regiões, o que hoje podemos constatar, pelo menos em forma crescente e sobretudo nos ambientes urbanos com mais população, é a presença de grande número de opções religiosas, umas mais tradicionais outras mais recentes, de acordo com as escolhas e as histórias individuais. O ambiente claramente antirreligioso diminuiu, crescendo a convicção de que os caminhos para a experiência religiosa são todos legítimos, podendo ser muito variados, incluído o caminho dos não crentes, que agora surgem como mais uma opção legítima, entre as imensas possibilidades existentes. No nosso ambiente “pós-secular”, já não se relaciona a qualidade de cada ser humano – do ponto de vista do exercício da sua cidadania, ou mesmo do ponto de vista moral – com a sua opção religiosa ou com a sua opção não-religiosa. Assume-se perfeitamente o facto de que um crente de determinada religião não é necessariamente melhor humano ou melhor cidadão do que os de outras religiões ou mesmo do que os não-religiosos. Como se comporta o cristianismo neste contexto? Qual a sua posição, entre uma tolerância legítima e a possibilidade de um relativismo completo?
A situação não é completamente nova, na sua história, embora possua contornos algo inéditos. É sabido que o cristianismo nasceu e deu os seus primeiros passos num ambiente sociocultural marcado por grande diversidade religiosa, embora sobre um pano de fundo de certa homogeneidade. Não que a noção de religião, na época, coincidisse completamente com a que possuímos hoje, mas é indiscutível que houve uma relação própria da comunidade cristã com as práticas religiosas envolventes. Sabemos que essa relação esteve marcada, preponderantemente, pela posição crítica, a ponto de os cristãos chegarem a ser considerados ateus. Nesse sentido, poderíamos dizer que o cristianismo foi, antes de tudo, uma crítica da religião – da religião civil, da religião gnóstica, etc.
É claro que esta posição mais radical depressa cedeu a uma aproximação a muitas práticas religiosas correntes, que acabaram por ser integradas na configuração explícita do cristianismo como uma religião. Nunca deixando de se afirmar como “a verdadeira religião”, por relação a todas as outras, delas assumiu muitas formas de dar corpo à sua verdade. E tem vivido a sua história nesta tensão entre uma relação acolhedora e uma relação crítica com outras experiências religiosas. Ao longo da sua história tem havido momentos mais radicalmente críticos – como ainda recentemente, na afirmação de que o cristianismo não é uma religião, mas uma fé, sobretudo em ambientes protestantes – ou momentos de maior aliança com as diversas expressões religiosas dos povos – como aconteceu, sobretudo, nos processos de inculturação nas denominadas “terras de missão”.
É claro que talvez nunca tenha conhecido, ao longo da sua história, uma situação de tamanha tomada de consciência – da parte da sociedade, em geral, mas também da parte do próprio cristianismo, sobretudo a partir de alguns documentos do Concílio do Vaticano II – do pluralismo religioso, como elemento inquestionável e mesmo positivo do nosso quotidiano contemporâneo. Isso convoca o cristianismo a retomar e repensar as modalidades como, ao longo da sua história, se relacionou com a diversidade religiosa. Para ser sintético e suficientemente claro, proponho aqui algumas tipologias de relacionamento.
- Indiferença – Uma primeira ideia subjacente ao pluralismo religioso pode levar a concluir que se trata de uma realidade de facto, que não levanta qualquer problema, precisamente por não ser muito significativa. Ou seja, partindo do pressuposto de que os diversos caminhos religiosos são todos limitados – em última instância, são todos igualmente “falsos”, pois não conseguem abarcar ou disponibilizar a realidade da divindade – qualquer um deles é tolerável, dependendo apenas das opções pessoais. Nesse sentido, nenhum crente – ou mesmo nenhum não-crente – tem que se envolver nas opções pessoais ou grupais dos outros, devendo apenas deixar que existam, tolerando-as. Em rigor, não lhe dizem respeito e, por isso, apenas lhe exigem o respeito de não se lhes opor, não lhe exigindo qualquer tipo de envolvimento. Trata-se, pois, de uma relação mínima ou mesmo de uma não-relação.
- Recusa/acolhimento – Mas, se se avançar um pouco mais, indo além desta indiferença fundamental, surge de imediato um “confronto” com a diferença, único que possibilita uma verdadeira relação, já que a indiferença é uma espécie de não-relação. O reconhecimento de uma diferença é sempre interpelante, não podendo por isso deixar indiferente. Nesta situação, a reação pode ser de recusa, na afirmação da falsidade da religião diferente, só porque é diferente, com a corresponde afirmação da exclusiva verdade do cristianismo. É claro que esta distinção entre falsidade e verdade pode assumir configurações mais mitigadas e mesmo muito complexas. Mas a tendência é para a recusa do diferente, por ser diferente. Ou então – e diríamos que correspondendo até mais à própria identidade do cristianismo – pode haver acolhimento da religião diferente, reconhecendo nela muitos elementos de verdade, com os quais o cristianismo até pode ser enriquecido. Não que se pretende simplesmente absorver a outra religião no cristianismo – o que também pode acontecer, mas não deixa de ser problemático – mas procura-se respeita-la, valorizando aquilo que nela é um contributo para a “salvação” do humano.
- Discernimento/crítica – Já se compreende que uma relação séria com um caminho religioso diferente implica, da parte do cristianismo, um processo de discernimento, que é ao mesmo tempo um discernimento da identidade própria e da sua validade, assim como da validade do diferente. Se, nesse processo de discernimento, se superar a pura recusa da diferença apenas por ser diferente – o que, em rigor, não implica discernimento, mas pura afirmação de algo fixo desde sempre – ele vai implicar uma atitude crítica, que é sempre também uma atitude de autocrítica. Nesse sentido, retoma-se inevitavelmente a sua dimensão como crítica da religião. Como sempre, tampouco hoje o cristianismo pode abandonar a sua característica como crítica da religião, seja de si mesmo como religião (até talvez em primeiro lugar), seja de outros caminhos religiosos.
De facto, a experiência religiosa e a sua organização estruturada são ambivalentes. Participam sempre da ambivalência do sagrado, que pode ser destrutor ou salvador do humano. A relação entre o sagrado e a violência, como possibilidade, é algo permanente e deve provocar uma atitude de vigilância, com elaboração de recursos mediadores, que impeçam o desenvolvimento do seu potencial destrutivo. Hoje como sempre. A pura existência de um pluralismo religioso assumido não nos livra, também nas nossas sociedades urbanas “desenvolvidas”, do arcaico potencial violento da religião. Por isso, no variado e por vezes confuso mercado do religioso contemporâneo, o cristianismo mantém viva a sua tarefa de vigilância crítica, em relação a si e em relação aos outros. Enquanto religião que respeita e acolhe o potencial “salvífico” das outras religiões, ele é sempre permanente crítica da religião, não permitindo que descansemos nas nossas realizações, perdendo eventualmente a sensibilidade para a potencial força desumanizadora das religiões, quando se pervertem a si mesmas; esta sensibilidade deve acompanhar e nunca ser mais débil do que a sensibilidade para com o seu potencial humanizador. Porque é a humanização – enquanto única manifestação “mundana” da divinização – o critério fundamental da verdade do religioso, seja em que religião for e seja em que época for.