Sex. Mar 29th, 2024
‘Vestigia Dei ‘- Rubrica dedicada à reflexão sobre o lugar de Deus na poesia portuguesa
(Parceria com o projeto Teotopias)

[6.] POETAS EM TEMPO DE INDIGÊNCIA

AGORA NENHUM GESTO NESSE ALGUÉM COMEÇA OU MORRE[1]

José Rui Teixeira

É um exercício arriscado o da teotopologia literária, sobretudo quando todas as perguntas convergem e se densificam na interrogação de Hölderlin. É como se houvesse um antes e um depois da elegia «O pão e o vinho»[2], um antes e um depois dessa incontornável pergunta: «wozu Dichter in dürftiger Zeit?» – «para que servem poetas em tempo de indigência?»[3].

Heidegger reflete e insiste na interrogação[4]. O tempo a que se refere – tempo de indigência, de penúria – é a «noite do mundo», o nosso tempo, caracterizado pela ausência de Deus:

A falta de Deus significa que já não existe um Deus que reúne em si, visível e univocamente, as pessoas e as coisas e que, com base nessa reunião, articule a história do mundo e a estância humana nessa história. A falta de Deus anuncia, porém, algo de muito pior. Não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor da divindade. O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta.[5]

E ser poeta em tempos de indigência significa – para Heidegger – dizer o sagrado, «cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos»[6], cuja desaparição coincide – a partir da leitura de um dos Sonetos a Orfeu de Rilke – com a ocultação da essência da dor, do amor e da morte[7]: «A própria indigência é indigente porque esconde o domínio essencial no qual a dor, a morte e o amor pertencem uns aos outros»[8].

Mas é num outro poema de Rilke – versos que improvisou numa carta de 1924[9] – que Heidegger desdobra a pergunta de Hölderlin, articulando conceitos como «risco», «desamparo», «aberto» e «círculo mais vasto», com a consciência de que a poesia é também «tarefa para um pensamento, eis o que ainda temos de aprender neste instante do mundo. Tomemos o poema como um ensaio de meditação poética»[10].

Ainda assim, Heidegger aborda a pergunta de Hölderlin ao modo dos filósofos. Há um momento na sua reflexão em que parece ruminar o poema de Rilke e já não nos ocorre a pergunta de Hölderlin. Quando é assim, quase nos convencemos de que a verdade não há de escapar-nos.

Sem se referir a Hölderlin, Antero de Quental escreve, a propósito da publicação de Lira íntima (1881) de Joaquim de Araújo, um importante texto – «A poesia na atualidade»[11] – onde reflete sobre o fim da poesia: «A fase poética da Humanidade pode dizer-se que está a terminar. Este século terá visto os últimos poetas, como viu os últimos crentes»[12]. Para Antero, o espírito humano tinha entrado decididamente numa fase de racionalismo, de análise e crítica.

Trata-se de uma reflexão extraordinária, na qual Antero afirma que «entre a poesia, a metafísica e a teologia há relações tão íntimas, há um ar de família tão característico, que imediatamente denuncia uma verdadeira comunidade de origem»[13].

Numa espécie de cosmorama da história da poesia, desde Homero e Hesíodo, Antero guia-nos até à Renascença, antecâmara do «império decidido da análise, pela constituição das ciências e a correspondente organização dum ponto de vista racional, sistematicamente positivo»[14]. Esta seria, no entendimento do poeta, a última e a maior das revoluções do espírito humano. E entre «os destroços do passado, com os deuses e as entidades metafísicas, ficaria também soterrada a poesia»[15].

Porém, foram ainda necessários mais três séculos para que tal resultado se manifestasse claramente. O ciclo poético do fim do século xviii e do primeiro quartel do século xix é, para Antero, apenas um incidente: «o rebento tardio da velha árvore que, antes de morrer, concentrou nele um resto de seiva»[16]:

Essa poesia (sinal bem claro de enfraquecimento) é toda subjetiva. É o individualismo, o egotismo que a inspira nos seus grandes representantes, Byron, Shelley, Schiller, Heine, Lamartine, Hugo (onde é verdadeiramente Hugo), Mickiewicz, Espronceda, Herculano, João de Deus (que, por vir tão tarde, não deixa por isso de pertencer a essa ilustre família), Leopardi, Foscolo. Eles não representam já a vida coletiva do espírito humano, a crença e as aspirações dum mundo, a apoteose gloriosa ou sombria da humanidade, que os tem por intérpretes: representam-se apenas a si, eles, os últimos de uma raça condenada a desaparecer e que, sentindo a ferida interior por onde lhes foge a vida, interrogam inquietos o horizonte e, chorando ou rugindo, se assentam à beira da estrada para morrerem.[17]

Para Antero, esse egotismo e o desaparecimento da matéria poética objetiva determinam o fim da poesia. E foi frustrada a tentativa de Goethe de retomar a grande tradição: «A tentativa de Goethe era vã. E se ele, um dos maiores espíritos do seu século e do nosso, o não conseguiu, loucura seria esperar ainda bom êxito duma empresa que o momento histórico condena»[18]. Coube a Heine – escarnecendo o que adorava, fazendo a sátira da própria comoção, elevando o ceticismo à categoria de uma estética –

entoar o consumatum est sobre os destroços do antigo sentimento poético e quem sabe se de todo o sentimento…

O riso cheio de fel e lágrimas de Heine foi o suor da agonia, o suor de sangue da poesia, que a prosa racional, decididamente e universalmente triunfante do mundo, ia pregar num madeiro, dizendo-lhe: «se és filha de Deus, livra-te a ti mesma!»[19]

Seguiram-se Baudelaire – «prostituindo a poesia, a antiga inspiradora da virtude e do heroísmo, e obrigando-a a respirar as pestíferas flores do mal e a cantar o vício incurável, a maldade impenitente»[20] – e Poe, que «assentava o Desespero no sólio sagrado, a repetir num sonambulismo de tédio incurável, de tédio infinito, o seu estribilho de morte: “Never, oh, never more!”»[21]. Para Antero, foi assim que a poesia, na segunda metade do século xix, anunciou ao mundo a sua próxima extinção.

Apesar de ser muito extensa a citação, não quero substituir-me às suas palavras:

Outrora, em Israel, os poetas foram os pastores do Povo. Os vates sagrados, depois de criarem Deus, fizeram do Povo o primogénito desse Deus e o seu servo fiel no cativeiro do mundo. E, pelos seus poetas, impôs Israel a sua fé às nações, a fé que eles haviam criado. – Um pouco mais tarde, em Atenas, a República erguia em face da Acrópole a estátua de bronze de Ésquilo, como um segundo génio tutelar da cidade: as representações das suas tragédias eram solenidades religiosas, faziam parte do culto público, e uma cópia autêntica conservava-se nos arquivos da República, entre os documentos dos tratados, das alianças, das fundações de colónias, como uma das bases da grandeza nacional. – Mais tarde ainda, a Senhoria de Florença fazia explicar publicamente, na Igreja de Santa Maria, a Divina Comédia, como um quinto Evangelho, e encarregava esse ofício a Boccaccio, o maior erudito da época. – Camões morreu na miséria: mas não serviu o seu livro de consolação ao seu povo decaído e cativo? Não o uniu o povo no culto messiânico prestado ao Salvador encoberto? Não lhe comentou as estrofes como texto de profecias de futura grandeza? Não lhas contaram os últimos portugueses do Oriente, entre balas, no cerco de Colombo? Esta apoteose transformou num sólio, ou num altar, a legendária enxerga do hospital.

E o que é hoje a poesia? O que é hoje o poeta? Que diz ele hoje ao mundo? Uma experiência de Berthelot ou de Virchow, uma descoberta de Darwin ou Haeckel, uma página histórica de Ranke ou Renan valem mais, dizem mais ao espírito do século, do que toda a Babel sonora das estrofes de Victor Hugo.

E o mundo, a ele, que lhe diz, que ele entenda e que o inspire? Que lhe podem dizer o determinismo, o transformismo, a concorrência vital, a fatalidade da história? O mundo real, o mundo visto à luz da ciência, é uma coisa atroz — atroz e ao mesmo tempo inexpressiva. Despair and die!

O divórcio é completo. A poesia deixou de ter missão social. Os raros poetas, que ainda existem, são apenas os restos destroçados duma raça de outras idades e que breve terá desaparecido.

A poesia passou decididamente à categoria de literatura amena — ao lado da teologia, outra espécie também de literatura, com a diferença de ser mais enfadonha. Requiescant in pace.

Quererá isto dizer que a poesia ou pelo menos o poetar, tenha de desaparecer completamente?

Não é esse o meu pensamento. Mas afigura-se-me que ficará reduzida à expressão isolada de sentimentos muito pessoais e muito limitados, e cultivada e amada só por aquelas pessoas que, ou permanentemente e por natureza, como as mulheres, ou temporariamente, como os rapazes muito moços e dotados dalguma fantasia, reagem contra a tirania da reflexão e tendem a isolar o seu mundo de sentimentos da influência mortal do espírito analítico e positivo.

A alta poesia, épica, trágica, lírica – essa irmã da metafísica e da religião – terá assim desaparecido, mas subsistirá a poesia subjetiva, familiar e pessoal, como expressão de estados de espírito, ou particulares, ou raros e passageiros.

A poesia conservar-se-á, pois, mas tendo perdido o antigo carácter de uma das grandes forças sociais e espirituais da Humanidade, de agente poderoso da civilização. Ao som augusto da lira de Orfeu já se não erguerão cidade nem civilizarão povos. Essas cordas solenes e soberanas terão emudecido para sempre.[22]

É impressionante o vaticínio de Antero. É como se o mito do poeta romântico tivesse consistido num simulacro: o poeta romântico é um egotista autocomprazido na mornidão de «estados de alma» e o seu mito não é mais do que a tentativa de reanimação de um cadáver. Para que servem os poetas em tempos de indigência? Que relação pode ainda estabelecer a poesia moderna – neste caso romântica e pós-romântica – com qualquer coisa da ordem do sagrado?

Há tanta verdade pressentida nas palavras de Antero. E, ainda assim, alguma verdade há de ter-lhe escapado. Antero é, no contexto da literatura portuguesa, o mais alto representante dos poetas em tempos de indigência. Ao pôr fim à sua vida no dia 11 de setembro de 1891, em Ponta Delgada, num banco junto ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança – sob uma âncora e a palavra «esperança», em relevo e pintadas a azul sobre a parede branca –, Antero redime simbolicamene o múnus do poeta: a sua poesia pode não ter erguido cidades nem civilizado povos, mas será uma caixa de ressonância para a pergunta de Hölderlin.

E, no fundo, seria esse o trabalho da teotopologia literária, se a teotopologia literária existisse: tentar perceber – enquanto reitera a pergunta de Hölderlin – de que modo a literatura, recusando a banalidade intranscendente, se situa nas estâncias transimanentes de Deus como interrogação.

Quando os habitantes de Macondo – aldeia de Cem anos de solidão (1967) de García Márquez –, vítimas de insónia, procuravam retomar a sua vida sem a preocupação com o inútil hábito de dormir, Aureliano Buendía concebeu a fórmula que havia de os defender das evasões da memória: identificar cada objeto com um papel com o respetivo nome inscrito. Em pouco tempo, por toda a aldeia havia inscrições que identificavam todas as coisas, dos objetos domésticos aos animais e às plantas. Mais tarde, «estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, deu-se conta de que podia chegar o dia em que se reconhecessem as coisas pelas inscrições, mas em que não se lembrasse da sua utilidade»[23]. Na luta contra o esquecimento, os insones habitantes de Macondo, depois de identificar cada porção do seu quotidiano, procuraram descrever quais as funcionalidades de cada uma dessas porções: uma espécie de manual de vida prática desdobrado na realidade, que já não exigia apenas a identificação dos objetos e das suas funcionalidades, mas também dos sentimentos. «Na entrada do caminho para o pântano tinham posto um cartaz que dizia Macondo e outro, maior, na rua central, que dizia Deus existe»[24].

Se a teotopologia literária existisse, o teotopólogo literário teria de conhecer quem escreveu esse grande cartaz na rua central da aldeia. Por que motivo os habitantes de Macondo precisavam lembrar-se que Deus existe em tempos de insónia e amnésia? Cada objeto tinha já uma inscrição com o seu nome e o seu modo de utilização. A banalidade intranscendente estava já descrita: o pormenor de cada descrição era já uma forma de anuência e até de exaltação do prosaísmo. Não sendo relativo a um objeto concreto, o cartaz onde se lia Deus existe não tinha qualquer utilidade e não consta que nele tivesse descrito para que é que Deus – ou a existência de Deus – servia.

Se Hölderlin tivesse, então, passado por Macondo, teria certamente querido conhecer o autor daquele cartaz, porque nele reconheceria o poeta em tempos de indigência; porque só Hölderlin poderia assumir até às últimas consequências, não qualquer resposta, mas a pergunta: por que motivo precisamos lembrar-nos que Deus existe em tempos de insónia e amnésia?

[1] Ruy Belo, Todos os poemas, p. 108.

[2] Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, pp. 51-61.

[3] Ibid., pp. 58-59

[4] Martin Heidegger, «Para quê poetas?», in Caminhos de floresta, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 307-367.

[5] Ibid., p. 309.

[6] Ibid., p. 312. Este é um bom contexto para sugerir a reflexão de Roberto Calasso: A literatura e os deuses, Lisboa, Gótica, 2003.

[7] Rainer Maria Rilke, «Sonetos a Orfeu» (xix), in Poemas – As Elegias de Duíno – Sonetos a Orfeu, Porto, Edições Asa, 2001, p. 210

[8] Martin Heidegger, «Para quê poetas?», p. 316.

[9] Cf. ibid., pp. 317-318.

[10] Ibid., p. 318. Na sequência desta afirmação de Heidegger, seria interessante convocar a reflexão de Chantal Maillard: La creación por la metáfora – Introducción a la razón-poética, Barcelona, Anthropos, 1992.

[11] Antero de Quental, «A poesia na atualidade», in Prosas (vol. ii), Lisboa, Couto Martins, s/d, pp. 310-326.

[12] Ibid., p. 310.

[13] Ibid., p. 311. «A poesia, tomada nos seus altos exemplares, nos Salmos hebreus, na Tragédia esquiliana, e ainda na de Sófocles e Eurípedes, em Hesíodo e Píndaro, em Virgílio e Lucrécio, em Dante e Calderón, participa da natureza da especulação metafísica e do dogmatismo teológico. E, por outro lado, o que são a metafísica e a teologia senão vastos poemas cosmogónicos e psicológicos, construídos com uma amalgama de símbolos e raciocínios, em que a imaginação, apesar duma subtileza silogística toda formal, domina e triunfa?» – ibid., pp. 311-312.

[14] Ibid., p. 317.

[15] Ibid.

[16] Ibid.

[17] Ibid., pp. 317-318.

[18] Ibid., p. 319.

[19] Ibid., pp. 319-320.

[20] Ibid., p. 320.

[21] Ibid.

[22] Ibid., pp. 320-322.

[23] Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 45.

[24] Ibid.

Imagem de Andrew Martin por Pixabay
Textos recolhidos de TEIXEIRA, José Rui – Vestigia Dei: Uma leitura teotopológica da literatura portuguesa. Maia: Cosmorama Edições, 2019, 78pp.