Sex. Abr 19th, 2024
GLOSASEspaço de comentário a obras que interpelam o tempo presente

Tiago Azevedo Ramalho

Acompanhamos nestas glosas a obra de Charles Taylor, A Secular Age. Depois de apresentado o seu objecto (glosa 1), versámos o primeiro capítulo da obra, relativo ao percurso desde uma aquiescência natural a fé até à “acção reformadora” que colocou em crise semelhante quadro mundividencial (glosas 2, 3, 4 e 5). Estamos agora no terceiro texto (depois de 6, 7 e 8) relativo ao segundo capítulo da obra (“A emergência da sociedade disciplinadora”/ The Rise of the Disciplinary Society).  A leitura do segundo capítulo será agora concluída, incidindo a presente glosa, portanto, sobre as páginas 125-145.

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– 29. A força propulsora desta mudança. Direito natural e uma sua alternativa. – Se, no âmbito da profissão de fé calvinista, a fonte da confiança na própria capacidade de transformação da sociedade foi a crença na divina providência, no caso particular do neo-estoicismo foi a nova compreensão da ordem natural (ver o n.º 27). Mas deve notar-se que, se a noção de ordem ou de Lei natural tinham larga tradição no antigo pensamento filosófico e teológico (Aristóteles, S. Tomás de Aquino,…), adquirem agora uma nova tonalidade que reconfigura os respectivos significados de forma acentuada (p. 125).

Tem traços novos, com efeito, a noção de Lei Natural que emerge no séc. XVII (sendo elencandos, neste quadro de reconfiguração significativa do seu sentido, autores como Grócio – discípulo de Lipsius –, Pufendorf, Locke). As “leis naturais de comportamento” a observar já não são vistas como inscritas na natureza, mas perspectivadas como normas próprias da razão.

[Diferença que é muitas vezes traduzida na distinção entre jusnaturalismo e jusracionalismo (moderno).]

O que implica, nos antípodas de uma compreensão tradicional da Lei Natural, uma firme vontade de remodelação da sociedade de acordo com os critérios tidos por racionais (p. 126). Assim, com maior ou menor profissão de fé teísta, é comum a estes autores a aceitação de certas normas vinculativas, acessíveis por via racional: «Estas leis são-nos vinculantes, porque o Criador pode criar regras para os seus produtos. Mas não teríamos precisado da revelação para sabermos quais regras são essas.» (p. 127) Até que ponto esta nova perspectiva alinha com o fervor de moldagem da sociedade humana é visível num Locke, cuja psicologia da mente humana a tomava como tabula rasa na qual se poderiam inculcar quaisquer hábitos; ou na importância por si dada à educação (p. 127).

A emergência destas novas perspectivas é historicamente contemporânea do esforço de, numa Europa dilacerada por conflitos em que o factor religioso também desempenhou uma função nada irrelevante (é o século da Guerra dos 30 anos, por um lado, e da Glorious Revolution, por outro), encontrar um ponto de referência de ordem não confessional que pudesse obter certo consenso.

[A obra fundamental de Grócio tem por título justamente De iure belli ac pacis, isto é, Acerca do Direito da Guerra e da Paz].

Alguns dos elementos próprios desta nova perspectiva da Lei Natural terão longo curso no futuro: «Claro que esta perspectiva tinha, e precisava, de um lado voluntarista, sublinhando o poder da reconstrução; mas também carecia de uma noção de ordem normativa a colocar as regras e os fins desta reconstrução. Os conceitos cruciais a defini-lo já não são a hierarquia e o comando. O ponto de partida é antes uma raça de indivíduos iguais destinados a entrar uns com os outros numa sociedade de mútuo benefício.» (pp. 128-129)

Viver numa sociedade com tais características, com tais fins, com a protecção de direitos, etc., já não é visto como uma «preferência particular», mas como um caminho em vista do «lugar onde as coisas estão destinadas a chegar, um terminus ad quem no qual tudo tem o seu lugar próprio» (p. 129).

O empenhamento das próprias forças (voluntarismo) e um certo padrão objecto (normatividade da lei natural) conjugam-se em vista de uma remodelação da sociedade, a ter lugar a longo prazo: «Estamos no nascimento do conceito que agora toma o nome de “desenvolvimento”». E o tempo em que o referido desenvolvimento tem lugar é já o tempo “homogéneo e vazio” (n.º 10). Esta perspectiva, porém, caminhará – já no séc. XVIII – no sentido de ver a “harmonia” entre os seres humanos não já como um fim a atingir, mas como uma característica efectivamente já inscrita na natureza humana desde o primeiro momento. Ou, pelo menos, «exigindo apenas mais um pacote de reformas: políticas (por ex., governo representativo), económicas (por ex., laissez-faire) e sociais (por ex., colocar termo a castas e privilégios» (p. 130). Chegado a este quadro em que se experimenta a “civilização” como realidade presente, estão reunidas as condições para o humanismo (antropocêntrico, portanto) exclusivo (pp. 129-130).

Faça-se por enquanto uma ressalva. Ao tempo esta perspectiva ainda não era exclusiva, nem sequer dominante. Como perspectiva jurídico-política alternativa à invocação do Direito Natural estava, no séc. XVII (e com bastante sucesso), a alternativa da defesa do Estado absoluto (ou “barroco”): afirmando, por um lado, uma ordem absoluta soberana; por outro, uma hierarquia na qual cada um tinha o seu lugar (com alguma transigência, porém, em relação à nova ordem moral, como depois veremos). E, do ponto de vista da “teologia política”, invocando o direito divino dos bens (pp. 127-128).

[Sem prejuízo, as observações feitas no presente número poderão servir já de advertência para a muita reserva com que o termo Lei natural deve ser usado, atenta a sua profunda polissemia. Sobre este mesmo ponto incidirão algumas reflexões na fase final das glosas a esta obra.]

– 30. Ética de poíesis. Descartes. – Do quadro neo-estóico (n.º 27) resulta uma renovada ênfase na vontade como modeladora da praxis humana: uma ética de poíesis, em que a vontade é capaz de dominar sobre as paixões humanas (p. 130).

É linha de pensamento que arranca de Descartes (1596-1650), vindo a adquirir tonalidades inteiramente novas e que serão decisivas para o curso evolutivo dos acontecimentos. «Esta transição pode ser compreendida como arrancando de uma ética fundada numa ordem que está operante na realidade, para uma ética que vê a ordem como imposta pela vontade. Descartes arruína totalmente qualquer base concebível para a primeira, ao adoptar uma consistente visão mecanicista do universo material. Já não faz sentido falar dos elementos da natureza como expressando ou realizando uma forma. Nenhuma explicação causal deles nestes termos pode doravante ser feito inteligível. As formas e a sua expressão pertencem exclusivamente ao domínio das mentes. A matéria tem de ser explicada como um mecanismo. (…) Quer a ciência, quer a virtude exigem que desencantemos o mundo, que façamos uma distinção rigorosa entre mente e corpo, e releguemos todo o pensamento e todo o sentido para o domínio do intra-mental. Temos de colocar uma barreira firme, aquela, como vimos, que define o eu protegido [buffered self]» (pp. 130-131; v. n.º 6).

Da mesma forma, a acção ética correcta consiste doravante no exercício do domínio sobre o corpo. Num ponto divergente da ética estóica, as paixões passam a ser interpretadas como o auxílio dado pelo Criador para se poder responder às diferentes circunstâncias com que deparamos: devem é ser controladas pela vontade (p. 131). Por conseguinte, acaba por ruir de modo total qualquer possibilidade de a partir do universo exterior retirar um qualquer sentido de ordem comportamental (pp. 132-133). O bem supremo passa a ser a vontade racional, deixando-se conduzir pela razão (p. 133).

Neste quadro cartesiano, a suprema virtude é a générosité, entendida como a virtude humana que consiste na força de vontade de se predispor sempre a agir de acordo com critérios de racionalidade. Por isso, o critério de actuação tornou-se «auto-referencial», sem fazer apelo a qualquer fonte exterior (p. 134). Emerge, pois, uma «ética do controlo racional», em que o Eu se situa como super-protegido (super-buffered), já não só em relação ao mundo, mas também, por ex., em relação às suas próprias paixões (pp. 135-136). Como numa página mais adiantada da obra se virá a escrever, «a démarche crucial, como vemos em Descartes, é de isolar o agente do seu ambiente, eliminar totalmente a sua relevância (to zero in on it), e trazer ao de cima o que ele tem em si mesmo, abstraindo do que o rodeia. Isto é central para a estratégia de Descartes no cogito: vê primeiro as ideias que estão “dentro” de nós, e só depois coloca a questão de saber se elas correspondem ao que está aí “fora”.» (pp. 257-258)

– 31. Um segundo distanciamento. – O Eu não só se distancia de um mundo poroso (n.º 6) que lhe é exterior, como também cria uma barreira em relação a si próprio e a alguma das suas «funções corpóreas» (p. 137); não apenas um «barreira interior/ exterior, mas barreiras adicionais são criadas contra fortes desejos físicos e contra o fascínio pelo próprio corpo» (p. 142).

Se o que caracteriza a intimidade é um «fluxo de sensibilidade» entre duas pessoas (empatia, partilha emocional, …), o acento muda agora de gravidade. Mote central de actuação é agora: «tanto quanto possível, sê auto-suficiente» (p. 137). Embora a pessoa continue a desenvolver a personalidade em contextos interpessoais, o ideal é de «auto-suficiência, autarquia, autonomia» (p. 138).

Opera, portanto, um duplo movimento: de um maior rigor na definição do espaço de intimidade, e de quem nele é admitido e quem não (o que implica que, dentro dele, a vivência seja também muito mais intensa); e de, por consequência, distância para com algumas das próprias emoções e funções corpóreas (p. 139). Estes aspectos são explorados, com muitos exemplos de pormenor, nas pp. 139-140. Também neste quadro se compreende o dever de se guardar uma certa distância em relação ao desejo sexual descontrolado (sem ignorar algumas tentativas de imprimir uma mudança neste mesmo ponto no séc. XX) ou à violência. Em resultado deste processo de distanciamento entre o Eu e estas realidades, o centro de gravidade da pessoa «moveu-se para fora do corpo. Está fora dele, no agente (…) capaz de controlo desapaixonado» (p. 141).

Uma vez que grande parte dos outros está situada fora do contexto de intimidade, «somos treinados para os tratar cada um deles como sujeitos dignificados de controlo racional» (p. 142). Treinados, portanto, para ser indivíduos.

– 32. Na iminência de uma viragem. Síntese interlocutória.A proposta explicativa de Taylor da viragem para uma Idade Secular assenta em descortinar dois momentos fundamentais (pp. 142-145). Dos dois, o primeiro é o de se chegar a uma distinção clara entre o natural e o sobrenatural, imanente e transcendente, não apenas ao nível teórico, mas ao nível da experiência prática (cf. as reflexões no n.º 2), a ponto de se poder viver sem o sentido da presença do divino. Assim, o primeiro passo teve de assentar na desagregação dos alicerces de uma fé natural (n.º 5 a 12), isto é, daqueles factores que operavam como sustentáculos de leitura teística do mundo. Mas o seu desaparecimento não implica o ingresso automático numa Idade Secular (pelo contrário, até pode ser um período de intensificação da prática religiosa, como desde logo ocorreu no campo protestante), mas apenas que desapareceram algumas âncoras tradicionais da fé. Tal implicaria um segundo passo, ainda não dado.

Note-se apenas um outro aspecto, próprio do cristianismo ocidental, que, acrescendo ao «zelo pela ordem» (n.º 13 e ss.), merece nota particular: o movimento interno da fé de procurar fecundar a vida ordinária com os valores evangélicos, com a valoração do próprio quotidiano. Mas «a ironia é que isto (…) prepara o fundamento para a fuga da fé para um mundo puramente material.» (p. 145)

Ao terminar este segundo capítulo, ainda não se deu a viragem para o “humanismo exclusivo”: mas os obstáculos para o efeito já se encontram removidos. Por momentos, porém, fica suspensa a narração cronográfica: os capítulos seguintes, ainda que integrantes da primeira parte da obra, suspendem a exposição histórica sequencial, procurando explorar outros aspectos desta primeira fase da modernidade.

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No próximo texto avançaremos para o terceiro capítulo, no qual se trata da Grande Desagregação gerada por este quadro moderno.


Imagem de Avi Chomotovski por Pixabay