Sex. Mar 29th, 2024
GLOSASEspaço de comentário a obras que interpelam o tempo presente

Tiago Azevedo Ramalho

 

Acompanhamos nestas glosas a obra de Charles Taylor A Secular Age. Depois de apresentado o seu objecto (glosa 1), versámos os dois primeiros capítulos da obra: o primeiro relativo ao percurso desde uma aquiescência natural a fé até à “acção reformadora” que colocou em crise semelhante quadro mundividencial (glosas 2, 3, 4 e 5); o segundo relativo à “sociedade disciplinadora” emergente daquela reforma (glosas 6, 7, 8 e 9). Nos três demais capítulos da primeira parte da obra, suspende-se a abordagem cronológica e atenta-se nalgumas feições próprias desta primeira era moderna. Após a análise do capítulo 3 (glosa 10) e de uma parte do capítulo 4 (glosas 11 e 12), a primeira parte da obra será hoje concluída: veremos, pois, a parte restante do capítulo 4 e a totalidade do muito breve capítulo 5.  O presente texto incide assim sobre as pp. 196 a 218.

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– 46. O Povo Soberano. – Segue-se um novo imaginário social da modernidade: o Povo Soberano (pp. 196-207). Alterando o adjectivo e o substantivo: a Soberania Popular.

A transição da noção de soberania popular de uma simples teoria para se transformar num imaginário colectivo (para a diferença entre teoria e imaginário: n.º 37) pode ter lugar, desde logo, pelas duas seguintes vias:

(a) «Uma teoria pode inspirar um novo tipo de actividade com novas práticas, e deste modo formar o imaginário de quaisquer grupos que adoptem tais práticas» (p. 196). Dá como exemplo a noção de “Aliança” (Covenant) já em uso nas igrejas puritanas, que depois se enraizou no imaginário político – em particular, na medida em que o arquétipo dessas formas de organização eclesial veio a ser adoptado em certas colónias americanas.

(b) «Ou a mudança no imaginário social surge com a reinterpretação da prática que já existia» (p. 196). Também a tradição norte-americana oferece exemplos neste sentido: por ex., a ideia de uma constituição antiga na qual o Parlamento tinha um lugar ao lado do Rei (p. 197), e que será aproveitada a ponto de subjazer ao mote revolucionário: no taxation without representation. A tradição antiga é, assim, apta a ser reinterpretada de modo a realizar nos novos valores: uma comunidade assente na soberania popular (a Constituição dos EUA começa justamente com as palavras: “Nós, o Povo (…)”/ “We, the People (…)”). Precisamente porque “apenas” reinterpretação, consegue evitar a ruptura radical, vazando-se novos sentidos em noções já correntes (p. 198).

Próprio da noção de soberania – e tal é novo em relação a formas antigas de representação – é a ideia de que a fundação da sociedade não se encontra «num tempo mítico antigo, [mas é] vista como qualquer coisa que o povo pode fazer hoje. Noutras palavras, torna-se algo que pode ser feito por acção colectiva no tempo contemporâneo, puramente secular.» (p. 197)

Quando, pelo contrário, não se encontra na tradição anterior elementos de apoio que possam ser reinterpretados no sentido pretendido – isto é, pontos de amparo no imaginário comum acerca da noção de “soberania” e do seu modo de exercício que servissem de elemento de estabilidade (por ex., pela não actividade de assembleias representativas) –, a mudança implicará a ruptura patente: serve agora de exemplo a Revolução Francesa (p. 199), de que muito em breve se falará.

Isto é, para que uma certa teoria possa ser devidamente aplicada, carece de um quadro contextual que permita a sua aplicação, de práticas associadas que lhe ofereçam sentido: esse quadro é precisamente o imaginário social. É necessário que «(1) os agentes saibam o que fazer, tenham de ter práticas no seu repertório que coloquem a nova ordem em prática; (2) o conjunto dos actores acordem nas práticas.» (p. 200) De outro modo não é apta a poder ser realizada facticamente.

Particularmente em atenção ao caso francês, Taylor atenta na obra de Rousseau e ao modo como reinterpreta a noção moderna de ordem (nn.º 37 a 41). Se em perspectivas anteriores se reconhecia certa tensão entre o desejo de promover o próprio interesse, por um lado, e a procura do bem comum, por outro, Rousseau procura fundir os dois aspectos: fazendo coincidir o amor a si (amour de soi) com o desejo de procurar o bem dos outros (pitié). A fusão entre estes dois elementos traduz-se politicamente na noção de vontade geral (p. 202); já as tendências egoístas decorrerão somente do chamado amor próprio (amour propre). Contudo, será aquela primeira modalidade, o amor a si, que constitui a realidade original e primária; e é ela que, num exercício de liberdade, está na origem da organização civil. Se porventura tal não se realiza efectivamente é por causa do amor próprio que corrompe a organização social e que cria liames de dependência.

Neste quadro, a razão já não se apresenta como guia e mestra; antes se afigura «serva do pensamento estratégico, e que apenas presta para nos envolvermos mais profundamente em cálculos de poder que, através da tentativa de controlar os outros, de facto nos torna cada vez mais dependentes deles.» (p. 203) E que acaba por anular o verdadeiro Eu. Necessário é o retorno à realidade originária, primeira, que é abafada pelo mundo: há que escutar a voz da consciência (pp. 203-204).

Destes elementos resulta um quadro mundividencial com as seguintes características (pp. 204-205):

(a) Centralidade da noção de virtude, mas entendida enquanto fusão entre o amor a si e o amor à comunidade;

(b) Certo “maniqueísmo”, dado que, não conhecendo nenhuma distinção entre o espaço público e privado, aquele que nela insista é visto como vicioso, corruptor, traidor;

(c) Discurso com ressonância quase-religiosa;

(d) Uma noção de representação – num sentido diferente, e excludente, de representação electiva – em que «a vontade geral é o lugar da máxima transparência, no sentido de que aí estamos maximamente presentes e abertos uns aos outros quando as nossas vontades se fundem numa só» (p. 204). A esta “transparência” opõe-se a “opacidade”, sendo a transparência manifestada mediante verdadeiras liturgias públicas que expressam a vontade geral. Os festivais da República, no quadro da Revolução, «foram tentativas de tornar a República manifesta para o povo, ou o povo manifesto para si próprio, seguindo Rousseau» (p. 205).

Mas, precisamente porque uma maioria da população continuaria num estado de corrupção, apenas uma minoria de virtuosos, capaz de viver nas suas próprias vidas a fusão entre o amor a si e o amor à sociedade, poderá arrogar a condição de representante da vontade geral – a qual agirá no sentido de expandir e de disseminar a sua própria noção de virtude, obstando a eleições representativas, que para outro tanto não serviriam do que para a disseminação da visão corrompida da maioria (p. 206). Sem que, porém, se deixe de adoptar as suas próprias formas ritualizadas de expressão da vontade geral.

Atente-se de modo muito especial nas seguintes passagens, iluminadoras de muito do que se vem passando na vida contemporânea: «Podemos ver aqui a tentação da política de vanguarda que se tornou uma parte fatídica do mundo contemporâneo. Este tipo de política envolve uma pretensão de “representação” de um novo tipo. (…) Podemos dizer que esta forma nova, não totalmente confessada, é antes um tipo de representação por “incarnação”. A minoria incorpora a vontade geral, e é o único lugar onde está incorporado.» (p. 206). Não, porém, como representação estável, mas, antes, como agentes de uma «transição revolucionária. É parte de uma teoria da Revolução; não tem lugar numa teoria de governo.» (p. 206)

É, portanto, uma «política de virtude, enquanto fusão da vontade individual e geral, e é maniqueísta, profundamente “ideológica”, mesmo quase religiosa no tom. Procura a transparência, e por isso receia o pólo oposto, agendas escondidas e conspirações.» É também nesta corrente que se filia o comunismo leninista. Próprio desta linha, portanto, está uma noção de representação que se distingue significativamente do processo eleitoral através de assembleias: assenta em, primeiro, em formas «discursivas e quase teatrais» (em sentido derivado, pode mesmo dizer-se: litúrgicas) que manifestam a vontade geral; e, depois, numa como que, conforme a designa Taylor, representação «por incarnação» (p. 207).

[O que nos permite nitidamente tomar consciência de que o mesmo significante democracia representativa é utilizado para designar bem diferentes formas de organização política, mesmo quando se opõem entre si. Com efeito, a livre representação electiva opõe-se certamente ao que tão impressivamente Taylor chama representação por incarnação. A dificuldade está em que mesmo esta última se pode apresentar como democrática, precisamente por a classe dirigente arrogar a qualidade de representante incarnada do demós. Mas de que espécie de democracia falamos?

Reconheçamos que esta última linha corrente do pensamento político pode ainda legitimamente servir-se do termo “democracia”, por, na sua própria autocompreensão, o poder residir junto de quem entende representar o conjunto da população. Assim sendo, dir-se-á que funcionalmente se pode pensar nesta realidade como uma democracia, uma vez que a função de representação estaria cumprida. Mas isto é dizer pouco. Pois ainda que tal possa ser a função, há-de atentar-se no modo como ela é desempenhada, e qual a estrutura de repartição de poder que pressupõe: com efeito, o poder não está equitativamente repartido, mas confiado apenas a uma pequena parte da população, a única reconhecida como apta à “representação incarnada”. O que funcionalmente seria uma democracia, é estruturalmente, portanto, não mais do que uma oligarquia: o poder encontra-se apenas nas mãos de alguns, ainda que esses alguns se apresentem, no seu próprio discurso, como representantes de todos.

Mas se o poder está nas mãos de alguns, então há alguns outros que nele não podem participar por via electiva (ou que não têm franqueado o acesso ao espaço público): isto é, que se experimentam como excluídos da possibilidade de participação no preciso poder que arroga a qualidade de os representar. Para estes, aquilo que funcionalmente se apresenta como democracia, e estruturalmente é uma oligarquia, não mais é, afinal, do que uma nua ditadura de classe.

Os tempos actuais não são favoráveis, é certo, a formas ostensivas e transparentes de apropriação do poder político por uma classe: ou não fosse a modernidade líquida fluida e esquiva. (Além de que uma tal apropriação ostensiva do poder contrariaria a tal ponto alguns elementos do imaginário da ordem moral moderna que teria dificuldade em obter a ressonância necessária para poder ser efectivamente levada a acto.) Mas a gradativa apropriação do poder, não em nome da defesa de interesses privados, mas de uma melhor promoção do “interesse público”, da devida defesa dos “direitos individuais”, da “decência” pública, etc., com o simultâneo banimento do espaço público, por parte de uma multitude de agentes que incarnam representativamente a população, de todos aqueles que não partilham do ideário em afirmação, já não é um fenómeno marginal. Antes se tornou, na última década, um fenómeno central e incontornável da vida política dos Estados ocidentais.

Ante o exposto, não nos poderá bastar a legitimação funcional que concretamente seja dada para a forma de organização política da sociedade: importa também colocar em evidência qual, do ponto de vista estrutural, a forma de repartição do poder que através dela, de modo latente mas não menos eficaz, se encontra em afirmação.]

– 47. A Sociedade de Acesso Directo. – Por «Sociedade de Acesso Directo» (Direct-Access Society), apresentada às pp. 207-211, descreve Taylor uma sociedade na qual «cada um está equidistante do centro, em que estamos imediatamente em relação com o todo» (p. 209). Trata-se, portanto, da característica fundamental da imediação social: participação de cada um do todo social sem necessidade de um poder mediador que intermedeie semelhante participação.

Se é permitida a imagem, a imediação supõe a passagem de um modelo de organização societária de índole vertical para um outro horizontal: uma sociedade é perspectivada como o agregado de todos aqueles que se encontram em conjunto num certo momento, sem qualquer outro factor de união. Subjaz-lhe, por conseguinte, uma noção puramente secular do tempo (pp. 208-209). De um modelo de sociedade vertical em que cada um participa do todo a partir das suas partes (como membro de uma cidade, como súbdito de um certo senhor,…), passa-se a uma outra em que a noção de cidadania existe independentemente de qualquer outro elemento de pertença (p. 210). A participação no todo societário opera, pois, sem mediações; e por isso o termo “Acesso Directo”. Com efeito, o mundo moderno contém múltiplas realidades com estas características: a esfera pública (n.º 43-45); a economia de mercado; a cidadania; e, genericamente, outras realidades englobantes como a identificação com estilos artísticos ou movimentos sociais de diferente natureza.

Estas características ligam-se profundamente ao individualismo moderno: «Estes modos de acesso directo imaginado estão ligados às, e de facto são apenas diferentes dimensões das, igualdade moderna e do individualismo. O acesso directo elimina a heterogeneidade da pertença hierárquica. Torna-nos uniformes, e esse é um modo de se tornar igual. (…) Ao mesmo tempo, a desconsideração de várias mediações reduz a sua importância as nossas vidas; o indivíduo está cada vez mais livre delas, e deste modo tem uma autoconsciência cada vez maior de ser um indivíduo. O individualismo moderno, uma ideia moral, não significa eliminar toda a pertença – tal seria o individualismo da anomia e do colapso social –, mas imaginar-se a si próprio como pertencendo a entidades cada vez mais vasas e impessoais: o estado, o movimento, a comunidade da humanidade» (p. 211).

A plena realização deste ideal dá-se quando em todas as paragens – na cidade e no campo – o mesmo ideal é partilhado.

– 48. O Espectro do Idealismo. Síntese. – A terminar a primeira parte da obra encontra-se um brevíssimo capítulo 5, de título “O espectro do Idealismo”/ The Spectre of Idealism (pp. 212-218). Destina-se a fazer algumas precisões ao curso da exposição, nomeadamente ao risco do processo histórico delineado por Taylor poder ser apresentado como “idealista”, isto é, tido por puramente guiado pela Ideia, atento o especial papel que reconhece ao papel de dadas construções de pensamento, depois ingressadas no imaginário social, geradas neste período histórico. No essencial, limita-se Taylor a ressalvar que, no curso da história, as ideias e os factores materiais se interrelacionam, e que ambas, às vezes em conjunto, às vezes não, interferem na modelação do mundo: «A única regra geral da história é que não há uma regra geral que identifique uma ordem de motivação que seja sempre a força directriz» (p. 213). Não há, pois, que cair em qualquer um dos reducionismos de tudo reconduzir ao “idealismo” ao “materialismo”. Não sendo o capítulo, neste ponto, de particular interesse para o fio principal do estudo (antes coloca questões de Teoria ou Filosofia da História), podemos dispensar uma análise de pormenor.

As últimas linhas do capítulo, porém, sintetizam de modo claro uma das viragens centrais que operou nesta primeira metade da modernidade, sobre a qual versa a primeira parte da obra, correspondendo essencialmente aos séculos XVI a XVIII – linhas que, colocadas ao termo da primeira parte, lhe servem de conveniente epílogo: «Esta transição do século XVIII [para a noção de ordem] é, num certo sentido, crucial no desenvolvimento da modernidade ocidental. A sociedade “educada” (polite) tem um novo tipo de autoconsciência, a que podemos chamar “histórica” num novo sentido. Não estava apenas consciente, sem precedentes, dos seus alicerces económicos; tinha também uma nova compreensão do seu lugar na história, uma forma de vida que pertencia à sociedade “comercial”, um estádio da história ao qual se acabara de chegar. O século XVIII gerou novas teorias da história, assentes em diferentes estádios, que viam a história humana a desenvolver-se através de séries de estádios, definidos pela forma da sua economia: por ex., caçadores-recolectores, agricultores, etc., culminando na sociedade comercial moderna. Isto fez com que se visse toda a transição a que chamei domesticação da nobreza, assim como a pacificação interna das sociedades modernos, a uma nova luz. O comércio, “le doux commerce”, estava revestido deste poder de relegar as virtudes marciais e modo militar de vida para um papel subordinado, terminando o seu domínio de longa data da cultura humana. As sociedades políticas já não podiam ser compreendidas simplesmente em termos perenes; é necessário tomar a consideração a época em que as cosias ocorrem. A Modernidade era uma época sem precedentes.” (p. 218)

Transcrita a síntese histórica, estamos já em condições, portanto, de retomar o fio da história interrompido no capítulo 2 (v. a síntese no n.º 32).

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Fá-lo-emos a partir da próxima glosa, a primeira sobre a Parte II da obra: «O ponto de viragem».


Imagem de Gerd Altmann por Pixabay