Qua. Abr 24th, 2024
‘Duas Asas’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de Edith Stein
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

Revelação económica e antropológica

Javier Sancho*

 

Quando Deus se faz presente na história, não o faz só para manifestar aquilo que é em si e no seu mistério. Ao revelar o seu ser está a dizer ao homem que o quer salvar, a saber, que a humanidade alcance a sua plenitude. Deus, ao revelar-se, oferece o seu plano de salvação (economia divina) e revela o homem ao homem (antropologia)18. Edith descobre nestes dois elementos o conteúdo basilar da razão de Deus aparecer na história.

 Deus dá-se a nós na Palavra, o que significaria que a Escritura acolhida é participação nessa vida divina19. E aqui é onde radicaria um dos aspectos do mistério que definem a Revelação escrita: tem o poder de infundir a vida divina:

«Por isso pode dizer-se que a Palavra de Deus é mais penetrante que uma “espada de dois gumes”, porque penetra até á divisão da alma e do espírito (Hb 4, 12). Pensa-se aqui na Palavra de Deus que julga, descobre os pensamentos e as intenções mais secretas do coração, e fundando-se sobre a sua própria tendência da alma a qual põe a nu, realiza a separação: a elevação da alma que a liberta da sujeição natural ao corpo e a conduz até ao livre domínio do seu corpo e dela mesma, assim como a infusão da vida divina nela.

Da infusão desta vida divina diz:… Deus dá o espírito sem medida (Jo 3, 14)»20.

 

Neste sentido, não é de estranhar que nos encontremos em Edith com uma série de afirmações contundentes fundamentadas no valor central que a Escritura deveria ter na vida do cristão, uma vez que não se trata simplesmente da narração das aparições de Deus na história, mas esse agir poderoso de Deus continua a fazer-se presente na Escritura. Por essas razões, Edith não duvidará em dar um valor central, intelectual e existencial, à Palavra de Deus. O homem, por meio do acolhimento «empático» da Palavra, vai descobrindo o caminho para cumprir a vontade de Deus e se empapar da sua vida divina21. Edith descobrirá, concretamente nos Evangelhos, o meio para gravar em nós a imagem de Cristo, de Deus. Numa das suas conferências refere:

«A imagem eterna de Deus entrou entre nós em figura humana em Jesus Cristo Filho de Deus. Se consideramos esta imagem, como no-lo diz a simples narração dos evangelhos, então se abrem os nossos olhos. Enquanto conhecemos melhor o Salvador, somos muito mais vencidos por esta grandeza e doçura da régia liberdade, que não conhece outro laço senão a submissão à vontade do Pai, desta liberdade de toda a criatura, que, ao mesmo tempo, é fundamento do amor misericordioso pela criatura. E quanto mais profundamente se grava em nós esta imagem de Deus, quanto mais desperta o nosso amor, mais sensíveis somos a todos os nossos desvios d’Ele em nós e nos outros: abrir-se-nos-ão os olhos para o verdadeiro conhecimento dos homens, livres de toda a dissimulação»22.

 

À luz destas afirmações entende-se o porquê de Edith conceder aos Evangelhos um lugar de suma importância durante toda a sua actividade como pedagoga e formadora. Está convencida de que a Escritura no seu conjunto contém um profundo carácter formativo23, que deve ser perscrutado sempre de novo se queremos educar autenticamente as pessoas, sobretudo quando se trata de traçar o caminho do homem para a união com Deus24. Aqui a Escritura é a fonte primordial. E sê-lo-á também como lugar onde encontrar as verdades que hão-de guiar toda a actividade pedagógica25.

Todas estas afirmações revalorizam-se ainda mais, se temos presente que para Edith Stein, a revelação não só manifesta a Deus e o seu plano de salvação, mas também revela o homem ao homem26. A nossa autora afirma que a Revelação foi dada ao homem para que conheça o que é e o que deve fazer27. Como veremos no capítulo dedicado a uma «leitura antropológica da Bíblia», a Sagrada Escritura constitui para Edith a principal fonte para captar o mistério que explica e dá sentido ao ser e à existência do homem. Mas não simplesmente de um modo genérico, mas tem em conta as diferenças entre os sexos, e, além disso, presta atenção à individualidade de cada pessoa28. Por isso, dirá que não há tarefa mais urgente que conhecer o que a verdade revelada diz sobre o homem29. Isso justifica, além disso, que se faça uso da Revelação para o conhecimento do ser finito30.

Edith Stein está convencida de que na Revelação encontramos o mais essencial que podemos saber sobre o homem, o seu objectivo e o caminho que a ele leva. E, por isso, não é de admirar que entre as suas intuições teológicas descubramos a sua consideração sobre a importância que os próprios mistérios de Deus têm para a vida do homem. Para Edith coincidiriam a imanência de Deus (o que Deus é em si mesmo) com a economia de Deus (o Deus revelado para a salvação dos homens). Isso dá um peso maior à linha melódica que nos quer apresentar na sua obra sobre João da Cruz: Ciência da Cruz. Pretende nesse escrito traçar o caminho espiritual para a união com Deus (presente nas obras do Santo), à luz do mistério de Cristo. Neste sentido, a Revelação não só revela o homem ao homem, mas o mesmo mistério de Deus tem uma importância substancial para o conhecimento do homem e do seu caminho para a plenitude. Edith lança estas perguntas que, em si mesmas, nos oferecem já uma resposta:

«Quem se atreveria a afirmar que os mistérios – (aqui refere-se à Trindade e à Encarnação) – carecem de importância para o caminhar terreno do homem, e, portanto, para a sua educação? O que poderia ter movido Deus a levantar para nós um pouco o véu dos seus segredos, senão o facto de que os necessitamos para viver a vida à qual fomos chamados?»31.

Deus ao passo do homem

Com estas palavras poderíamos descrever a dinâmica interna da Revelação de Deus durante toda a história. São dois os aspectos que encontramos tratados nos escritos de Edith Stein: a relação revelação de Deus e capacidade do homem, e algumas notas sobre o autor /autores dos diferentes livros sagrados.

No que diz respeito à relação entre a revelação e a capacidade do homem, Edith Stein está convencida, não só do carácter progressivo da revelação de Deus durante a história do Antigo Testamento, revelação que apontava para a plenitude em Cristo. Quando Deus se revela, fá-lo conforme a capacidade progressiva do conhecimento do homem. Quando Deus de comunica, dizíamos, entrega-se Ele mesmo, mas a limitação do conhecimento do homem faz com que esta comunicação corresponda a algum aspecto determinado. Neste sentido, Edith pensa que a revelação, enquanto realidade conhecida pelo homem, não abrange a plenitude infinita da verdade divina32.

Nessa mesma perspectiva se deveria ler a linguagem da Escritura, que equivaleria a uma acomodação à linguagem humana por parte de Deus. Deus fala na Escritura à medida do homem, tornando acessível o inacessível33. O Concílio Vaticano II exprimi-lo-á dizendo que a Sagrada Escritura nos mostra a admirável condescendência de Deuse que a Palavra de Deus, expressa em línguas humanas, se torna semelhante à linguagem humana34. Contudo, estas limitações aparentes da revelação, fruto do modo limitado de conhecer e compreender do homem, não são estritamente uma limitação à revelação de Deus. Ele pode, em todo o momento, e por meio da Palavra ou de um acto extraordinário, elevar o homem mais além do seu modo de pensar35, abeirando-o da visão divina, mas que, apesar de tudo, não se completa até que não se alcance a visão beatífica.

Deus manifesta-se na Palavra escrita. E serve-se dos escritores sagrados para transmitir aquilo que quer revelar: Deus valeu-se de homens eleitos, que usavam todas as suas faculdades e talentos; deste modo, agindo Deus neles e por eles, como verdadeiros autores, puseram por escrito tudo e só o que Deus queria36. Edith coincide plenamente com estas afirmações do Concílio, escrevendo explicitamente que os seus autores estão inspirados, quer dizer, dirigidos pelo Espírito Santo37. De todos os modos ela vai ter em conta outros aspectos.

Sobre o tema dos escritores dos livros bíblicos, Edith expressou-se no seu escrito Os caminhos do conhecimento de Deus38. O seu interesse não vai dirigido a considerar todos os elementos que caracterizam o autor bíblico, mas antes a procurar dar luz sobre a linguagem – tantas vezes simbólica – da Escritura.

Termina a sua exposição com esta visão conclusiva que resume o que estamos a afirmar, isto é, que o escritor material do livro bíblico pode ser mais ou menos consciente de ser inspirado, mas, em definitivo, embora não o saiba, está a ser guiado pela mão do Espírito de Deus:

«Pelo contrário, uma revelação sem inspiração, é impossível. Quando Deus mesmo ou uma verdade escondida se desvela, acontece graças ao seu Espírito; e quando um homem é solicitado para transmitir uma tal verdade a outro, deverá ser movido pelo Espírito de Deus. A verdade divina pode iluminá-lo espiritualmente, sem que oiça palavras ou veja algo. E deixa-se nas suas mãos a eleição das palavras com as quais revestir quanto tem que dizer. Percebe com palavras o que lhe é manifestado ou o que uma imagem lhe mostra, sendo possível, por sua vez, transmita a imagem e as palavras sem as entender ele mesmo. Mas pode ser-lhe aberto o sentido espiritual por meio de uma iluminação interior ou por palavras esclarecedoras acrescentadas»46.

O homem capaz de Deus

Se Deus se revela, e fá-lo de um modo adequado à capacidade do homem, quer dizer que o homem é capaz de Deus, tanto na ordem natural como na ordem da graça. Mesmo quando Edith se mostra de acordo com o apóstolo (Rm 1, 20) e com o Concílio (DV 6), enquanto que o homem pode aproximar-se naturalmente de Deus com a sua razão47, a sua atenção centra-se no modo sobrenatural: o acolhimento do deus revelado em fé e amor.

Edith Stein, quase sempre que fala da Sagrada Escritura, pensa numa leitura a partir da fé. Mesmo quando conhece a abordagem crítica da Escritura, e da qual ela mesma fará uso, está mais interessada em sublinhar a centralidade da Escritura na vida do cristão. Há, para Edith, um princípio até certo ponto lógico: quem crê em Deus, há-de crer também na sua Palavra, que há-de acolher na obediência da fé (Rm 1, 5). O cristão sabe que a Escritura é Palavra inspirada, e que ela mesma contém e transmite o que Deus nos quer participar. Que algo apareça enunciado na Bíblia, terá que ser motivo mais do que suficiente para que o crente o aceite: a Escritura leva em si mesma  a certeza da veracidade de Deus48.

Neste sentido, é evidente que uma leitura autêntica da Escritura só é possível a partir da fé, enquanto esta se apresenta como o único meio para acolher a Revelação49. A fé leva, em definitivo, a crer pelo simples facto de que Deus o tenha revelado50: uma fé, que como estamos a sublinhar, cria uma certeza e uma segurança na Palavra de Deus. Edith escreve:

«… se Deus se revela como o ente, como o criador e o conservador, e se o Salvador diz: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3, 36), estas são respostas claras à questão enigmática que concerne ao meu próprio ser. E se Deus me diz pela boca do profeta que me é mais fiel que o meu pai e a minha mãe e que é o mesmo amor, reconheço quão “razoável” é a minha confiança no braço que me sustém e como toda a angústia de cair no nada é insensata, enquanto eu não me desprender por mim mesmo do braço protector» 51.

Mas a Revelação não há-de ser só acolhida na fé, isto é, crida. O acolhimento na fé implica viver na dinâmica da Revelação52, deixar que a Palavra se transforme em vida, de tal modo que fé e revelação acabam por ser uma mesma coisa, um mesmo conteúdo53. A fé tem a Deus como objecto e a Revelação é Deus que se manifesta tal qual é: E caminho da fé conduz-nos a Deus pessoal e próximo, ao amante e ao misericordioso e dá-nos uma certeza que não se encontra em nenhuma parte no conhecimento natural54.

Este conhecimento e essa segurança vital que a aceitação da Revelação em fé realizam no crente, são indicações de que o acolhimento da Palavra é, ao mesmo tempo, orientação amorosa para Deus, ou, o que é o mesmo, acolhimento amoroso do Deus amante:

«Mas para nos darmos a Ele amando-o, devemos aprender a conhecê-lo enquanto amante. Assim só Ele pode abrir-se a nós. Em certa medida, o Verbo da revelação chega a este resultado. E a uma orientação amorosa, se nos atemos ao seu significado, pertence a aceitação plena de fé na revelação divina»55.

 

Javier Sancho. La Biblia con ojos de mujer. Edith Stein y la Sagrada Escritura. Editorial Monte Carmelo, 2001. Pp. 42-48.
Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay

18 A Dei Verbum, embora cite explicitamente a salvação do homem como objectivo da revelação (n. 6), não é tão clara quanto ao segundo conteúdo da revelação do homem. Neste sentido, poderíamos observá-lo como original em Edite. Vê-lo-emos mais de perto no capítulo sobre a leitura antropológica da Escritura.

19 Cf. Mensch 52.

20 SFSE 475.

21 Cf. O mistério do Natal, em Obras 387.

22 A dignidade da mulher e a sua importância para a vida do povo, em A mulher 296-297.

23 Cf. A vida cristã da mulher, em A mulher 106.

24 Cf. CC 45.

25 Cf. VT 210.

26 Embora a Dei Verbum não se detenha a examinar este significado antropológico da Revelação, o Concílio torná-lo-á presente no documento Gaudium et Spes. Cf. GS 22. 41.

27 EPH 293.

28 EPH 22.

29 EPH 293.

30 SFSE 75.

31 EPH 296.

32 SFSE 44.

33 SFSE 77.

34 DV 13.

35 SFSE 44.

36 DV 11.

37 Os caminhos do conhecimento de Deus, em Obras 477.

38 Em Obras 449-495.

46 Ib. 479-480.

47 Cf. Mensch 40.

48 Cf. Os caminhos do conhecimento de Deus, em Obras 476-477.

49 Cf. SFSE 75.

50 Mensch 41-42. Cf. Hb 11, 1 ss; 1 Co 2, 9 ss.

51 SFSE 75-76.

52 Cf. CC 208.

53 Cf. Ib. 225.

54 SFSE 77.

55 Ib. 471.