Qui. Abr 25th, 2024
‘Duas Asas’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de Edith Stein
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

Ao ritmo do Evangelho

Javier Sancho*

No Evangelho descobrimos o autêntico rosto de Maria. Tudo o que necessitamos de saber dela, encontra-se ali reflectido:

«Na Sagrada Escritura encontramo-nos com muito poucas palavras sobre a Virgem Maria, mas essas palavras são como grãos de ouro puríssimo: se os fundimos com o fogo de uma amorosa contemplação, serão mais que suficientes para que irradiem sobre nós e sobre toda a nossa vida um luminoso resplendor»13.

Não encontramos em Edith um estudo sistemático de todos os textos marianos presentes no Novo testamento. Nem sequer encontramos alusões a todos os textos, embora sim a uma grande parte deles. A nossa autora, como vimos a sublinhar repetidamente, está interessada particularmente em realçar aqueles elementos e atitudes que caracterizam a vida da Virgem Maria e que servem de exemplo para todos os seguidores do seu filho. Ela, como primeira redimida e a mulher perfeita, encarna em si mesma o ideal do seguidor perfeito de Cristo. E a ela temos que olhar para o descobrir.

Para Edith Stein o que caracteriza toda a vida evangélica de Maria é a sua entrega total à missão encomendada por Deus. E essa será a chave – manifestada no fiat – para ler e interpretar todo o seu caminho. Edith resume m poucas palavras o conteúdo da vida-missão de Maria:

«Desde que sabe que gerou um filho esteve totalmente ao serviço desta missão. Foi-lhe dado por Deus, guardou-o para Deus. A sua vida foi uma expectação recolhida até à hora do nascimento, depois serviço fervoroso e atenção a todas as palavras e sinais que deixam prever algo do seu futuro caminho, junto com todo o respeito à divindade escondida n’Ele, autoridade responsável em relação ao menino, participação na sua obra em confiada perseverança até á sua morte e mais além da morte»14.

Essa entrega total e generosa concretiza-se como dedicação à sua vocação de mãe. Na maternidade, entendida num sentido global, Maria desenvolve o sue papel de serva do Senhor durante toda a sua vida. Confundem-se no conteúdo a maternidade e a realização da vontade de Deus:

«No centro da sua vida está o seu Filho (Lc 2, 51-52). Espera o seu nascimento com alegre expectação (Lc 1, 45-55), protege a sua infância (Lc 2, 39-40), segue-o em todos os caminhos próximos ou longínquos como Ele deseja (Lc 2, 46-50, 8, 19-21; Mt 12, 46-50; Mc 3, 31-35; Jo 2, 1-12), sustém-no morto nos braços: executa o testamento de quem partiu (Jo 19, 25-27). Mas tudo isto não o faz como coisa sua, nisso é a escrava do Senhor, faz o que Deus lhe ordenou (Lc 1, 38). E, por isso, considera o Filho não como sua propriedade: recebeu-o das mãos de Deus, põe-no novamente nas mãos de Deus para o oferecer no templo (Lc 2, 22-24), para o acompanhar até à morte de cruz (Jo 19, 25-27)»15.

Aqui fica resumida a vida da Virgem. Mas vamos procurar seguir, de um  modo lógico, a partir dos relatos evangélicos, a leitura que Edith faz dos momentos centrais da vida de Maria.

A anunciação (Lc 1, 26-38). Mais do que fazer um comentário de todo o relato, Edith limita-se a sublinhar as respostas da Virgem, as suas primeiras palavras que nos foram transmitidas. Vamos descobrir neste texto a presença dalgumas tradições marianas que lhe servem para completar a sua leitura e interpretação:

«As primeiras palavras que ouvimos da boca de Maria, no diálogo da Anunciação, “como será isso, se eu não conheço homem”? (Lc 1, 34), são a declaração da sua pureza virginal. Maria fez uma entrega total de si, do seu coração, do seu corpo, da sua alma, e do seu espírito ao serviço de Deus. A sua vida agradou ao Todo-Poderoso, que aceitou a sua entrega e premiou-a com a admirável fecundidade da maternidade divina. Nela penetrou profundamente o mistério da virgindade, sobre a qual o seu Filho mais tarde disse: “Quem puder entender, entenda” (Mt 19, 12). O seu coração saltou de alegria quando experimentou “o que Deus tinha preparado para aqueles que o amam” (1 Co 2, 9; Is 64, 3)… Quando o Anjo ouviu a resposta de Maria dissipou imediatamente todas as suas preocupações. Deus nunca pensou desligá-la do seu voto. De maneira nenhuma; precisamente, em virtude da sua virgindade, pode ser fecundada pelo Espírito Santo, isto é, converter-se em Virgem Mãe. Escutemos agora a segunda frase da Virgem: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). Esta é a expressão mais perfeita da obediência. Obedecer significa escutar a palavra de outro, para se submeter à sua vontade. E é uma virtude, ou melhor, um acto da justiça submeter-se a outro quando é nosso “superior”, e como tal tem o dom de nos indicar de modo mais seguro o caminho a seguir. Aqui, não se entende por justiça a perfeição em si, mas a virtude cardeal, que dá a cada um o que lhe corresponde»16.

A visita a Isabel (Lc 1, 39-45). Tivemos a ocasião de indicar anteriormente a importância que Edith dá a este acontecimento, pondo a atenção na alegria experimentada por João Baptista no seio de Isabel perante a presença de Maria. Neste caso, a nossa autora pretende sublinhar a importância da maternidade e a íntima união existente entre a mãe e o filho durante a gestação. Uma unidade que supera o meramente biológico ou psíquico e se realiza no anímico e espiritual. Deste modo, Edith pretende fazer-nos ver como a maternidade de Maria, supõe igualmente, uma profunda união entre a mãe e o filho. E ela encontra aqui um fundamento para poder falar do sentido mais humano e menos dogmático da Imaculada Conceição de Maria:

«Mas o Filho do homem, que quis ser em tudo homem, excepto no pecado, não deveria receber do amor de sua mãe não somente a carne e o sangue para a formação do seu corpo, mas também o alimento da alma? Mais ainda, isto não devia constituir o sentido mais profundo da Imaculada Conceição? A mãe que no mais puro do seu corpo e da sua alma queria assemelhar-se ao seu filho devia ser absolutamente pura. A maternidade de Maria é o arquétipo de toda a maternidade; como ela, toda a mãe humana deveria ser mãe com toda a sua alma, para fazer penetrar toda a riqueza da sua alma na do seu filho»17.

O Magnificat (Lc 1, 46-55).  Nos escritos de Edith encontramos poucas menções esclarecedoras ou interpretações em relação a um dos mais belos textos marianos como é o Magnificat. Poderíamos especular ao compasso da sua vida sobre uma possível interpretação do mesmo, mas afastar-nos-íamos do nosso propósito. Nesta ocasião podemos recordar um texto que há alguns anos se atribuía a Edith. E embora não sendo do seu punho e letra podemos supor que se identifica muito bem com a sua maneira de pensar. Vai muito na linha de uma leitura sócio-política do Magnificat, muito familiar à teologia da libertação:

«Quem pode afirmar que a política não tem nada a ver com a religião, e que as almas têm que afastar-se da vida pública? Se a Virgem de Nazaré, na paz e no silêncio da sua alma absorvida em Deus seu Salvador, se interessa, na estrofe central do Magnificat, da cena deste mundo, é possível que o homem religioso, e não menos a mulher, permaneça indiferente…»18.

Os adoradores do Menino Jesus (cf. Lc 2, 12-20; Mt 2, 1-12). Edith foi sempre uma grande admiradora do mistério do Natal, tal como descobrimos figurado em vários dos seus escritos espirituais. No entanto, a sua atenção centrou-se principalmente nessas personagens que rodeiam o mistério escondido deste evento. Todos juntos são um sinal evidente do que será depois a Igreja: encontramos ali o seu gérmen. Contudo, os Magos vão ser alvo particular da sua pena contemplativa:

«Quão imensa teria que ser a alegria da Mãe de Deus quando viu aproximar-se a magnífica caravana dos três Reis Magos! Era o cumprimento do que ela tinha rezado durante toda a sua vida e do que o profeta real predisse: “Reges Arabum et Saba dona adducent” (cf. Is 60, 6; Sl 72, 10). Chegavam então com os seus dons, os primeiros dos gentios; segui-los-ão outros até que se faça realidade que todos os povos da terra adorem o único Deus em espírito e em verdade.

E com os olhos do seu espírito via aproximar-se outra caravana, de tal maneira numerosa que ninguém poderia contar: todos os que ela própria chamaria – ela, a Mãe do Filho de Deus e a Rainha do seu futuro Reino –; os que ela chamaria como seguidores de seu Filho. Também eles trariam dons, dons mais preciosos que o ouro resplandecente, ou que o aromático incenso, ou que a mirra preciosíssima: um coração desapegado de todos os bens terrenos e assim livre para o Amor, por isso mais puro que o ouro; uma vontade que se consome na entrega à vontade de Deus e sobe até Ele como incenso de suave aroma; uma alma que venceu as suas paixões e que com a mirra dos defuntos está livre da corrupção.

É isto que Maria pede aos seus filhos, e o que seu Filho aconselhará aos seus amigos: o caminho da pobreza, obediência e castidade»[1]20.

Guardava a palavra no seu coração (Lc 2, 19. 51). Pelo menos em duas ocasiões o evangelista Lucas define a atitude de Maria como a daquela que em silêncio guardava e meditava no seu coração tudo o que acontecia e ouvia. Na intenção do evangelista parece descobrir-se uma tentativa para apresentá-la, além disso, como exemplo e incentivo de todos aqueles que buscam a Deus no diálogo silencioso. Pelo menos assim o interpreta Edith:

«A Virgem, que guardava a palavra de Deus no seu coração, é o modelo daquelas pessoas atentas nas quais revive continuamente a oração sacerdotal de Jesus (cf. Jo 17). E o Senhor escolheu preferentemente mulheres que, como ela, se esqueceram completamente de si próprias para se submergirem na vida e na paixão de Cristo, e serem seus instrumentos na realização de grandes obras na Igreja…»21.

Maria em Caná (Jo 2, 1-12). O acontecimento das Bodas de Caná manifesta-nos, na reflexão de Edith, a atitude que configura a vida de Maria, o seu modo de estar e situar-se perante o mundo e suas necessidades:

«… O seu olhar silencioso e penetrante observa tudo e dá-se conta onde falta algo. E antes de que outros se dêem conta, antes de que surja a vergonha, outorga a sua ajuda.  Encontra meios e modos; dá as indicações necessárias; e tudo em silêncio, sem se fazer notar»22.

Aos pés da Cruz (Jo 19, 25-27). Edith Stein é uma profunda contempladora do mistério da cruz, e junto da cruz nunca esquece de contemplar a Maria, a mãe dolorosa, que, no entanto, manifesta aqui a sua fidelidade à vontade do Pai e o seu amor ao Filho. Por isso, «sob a Cruz a Virgem das virgens converteu-se em mãe da Graça»23.

Esperando o dom do Espírito Santo (Act 1, 14; 2, 1-4). Dizíamos que para Edith a Virgem Maria é o símbolo da Igreja e o sue primeiro membro. Isso vai implicar, além de que a sua missão de iniciadora do Reino e de mãe da humanidade a colocam também no início da nova humanidade redimida em Cristo, que ela vai estar presente, como o centro, no começo da vida externa da Igreja:

«Reunida à volta da Virgem, que orava em silêncio, esperou a Igreja nascente a nova infusão do Espírito, que a devia vivificar para uma maior clareza interior e para uma acção exterior frutuosa»24.

A visão que Edith tem de Maria não acaba aqui. Mas tenhamos muito presente que os elementos que vão configurar o desenvolvimento da sua reflexão sobre Maria, como modelo de todo o cristão e de toda a mulher, aprofundam as suas raízes nas conclusões às quais chega a partir da sua reflexão bíblica. Com todos estes elementos sublinhados temos a estrutura da mariologia steiniana25.


13 Por ocasião de 1ª profissão da Ir. Miriam, em Obras 266-267.

14 Os problemas da educação da mulher, em A mulher 224.

15 O Ethos da profissão feminina, em A mulher 32-33 (as citações bíblicas não são de Edite).

16 Por ocasião de 1ª profissão da Ir. Miriam, em Obras 267-268 (o negrito é meu).

17 SFSE 531-532.

18 Aufgaben der katholischen Akademikerinnen der Schweiz, em ESW V, p. 225. A autora está a citar o Cardeal FAULHABER, Kommentar zu den Vesperpsalmen, München, 1929, p. 333. Este escrito foi durante alguns anos aplicado a Edite Stein por se encontrar uma cópia do mesmo entre os seus manuscritos. Demonstrou-se posteriormente que não é da sua autoria.

20 A festa dos Reis Magos (1942), em Obras 251. Noutro lugar afirma: «Encontramos nos homens que se reuniram em volta do presépio uma imagem clara da Igreja e do seu crescimento. Os representantes da antiga dinastia real, à qual tinha sido prometido o Salvador do mundo, e os representantes do povo fiel constituem  o traço de união entre o Antigo e o Novo Testamento. Os Reis do Oriente representam os pagãos, aos quais desde Judá lhes seria dada a salvação. Temos assim uma Igreja constituída por judeus e pagãos. Os Magos chegaram ainda ao presépio como representantes daqueles que em todos os países e povos procuram a salvação. A graça conduzira-os ao presépio de Belém, antes de pertencerem à Igreja visível. Vivia neles um desejo puro de alcançar a Verdade, que não se deixa conter nas fronteiras das doutrinas e tradições particulares. Deus é a Verdade e quer manifestar-se a todos aqueles que O procuram com coração sincero; por isso, tarde ou cedo, a estrela tinha que aparecer a esses sábios, para os conduzir pelo caminho da Verdade. Por isso, apresentam-se diante da Verdade encarnada e, prostrados diante dela, depõem as suas coroas a seus pés, pois todos os tesouros do mundo não são senão pó em comparação com ela. Os Magos têm também para nós um significado especial. Pertencendo já à Igreja visível, percebemos muitas vezes a necessidade interior de superar os limites das concepções e costumes herdados. Já conhecíamos a Deus, no entanto sentíamos que Ele queria ser procurado e encontrado de uma maneira nova. Por isso, buscamos uma estrela que nos indique o caminho recto. Essa estrela manifestou-se na graça da nossa vocação» (Vida escondida e Epifania, em Obras 243-244).

21 A oração da Igreja, em Obras 404.

22O Ethos da profissão feminina, em A mulher 37.

23 A elevação da Cruz, em Obras 239.  Para fazermos uma ideia da visão que Edite tem da Piedade veja-se: Juxta Crucem tecum stare, em Obras 594-595; Carta 28/4/1935, em Cartas 223-224.

24 A oração da Igreja, em Obras 403.

25Para uma visão mais completa da mariologia steiniana, remeto o leitor ao meu livro: Uma espiritualidade para hoje segundo Edite Stein, Burgos, 1998, pp. 361-379.


*Javier Sancho. La Biblia con ojos de mujer. Edith Stein y la Sagrada Escritura. Editorial Monte Carmelo, 2001. Pp. 105-109.

 

Imagem de José Jandson Queiroz por Pixabay