Ter. Abr 23rd, 2024

Oratório Peregrino

Um oratório à maneira de um viático para tempos de carestia
Uma proposta desenvolvida em parceria com

Irmãs do Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro


XXXVI Passo | Movida pela Palavra Divina

 

Isabel, «levantada» (UR 31) por Cristo depois de cada queda, volta a recomeçar o caminho seguindo o «plano de vida» que São Paulo lhe propõe e que hoje nos vai explicar.

«Enraizada» em Cristo, as suas raízes absorvem «a seiva divina». Graças a essa seiva alimenta-se, «reveste-se» de uma nova vida, rejuvenesce. Descobre-se a si mesma «cimentada» na terra sólida de Cristo e «elevada» acima de tudo o que é passageiro, armada contra as reivindicações da velha «natureza» que sobrevive em nós. «Firme na fé» graças a Jesus Cristo, canta os seus louvores «em todas as situações, e apesar de tudo». Realmente, a força de Deus manifesta-se na sua debilidade (2 Co 12, 9) e a vida de Jesus na sua carne mortal (2 Co 4, 11).

Acompanharemos, mais um dia, Isabel  na sua profunda leitura do Novo Testamento e «mergulharemos» com ela no «plano divino», no «grande mistério de Deus», que Ele concebeu em nosso benefício e para louvor do Pai.

Que impressionante impacto produz na alma de Isabel o Livro sagrado! Com olhar certeiro, «aprofunda nele com esse modo de pensar de Cristo de que fala São Paulo» (UR 21). A Palavra vibra nela, dilata o seu coração e ressoa amplamente na sua situação concreta e existencial. Isabel vive intensamente, com a Trindade no seu coração e com o Livro sagrado ao alcance da mão.

E o coração de Isabel é extremadamente sensível, graças a uma longa fidelidade ao seu Amado. O amor ao que fala aumenta grandemente a ressonância afectiva da palavra escutada. Isabel sabia, tal como nós, que a Palavra revelada contém a mensagem fundamental de Deus e todas as perspetivas vivificantes que Cristo nos oferece; mas compreendia ainda melhor do que nós que o divino e eterno Amador, presente no seu coração, nos pede que o tememos a sério. E Isabel não queria ler por amor à ciência, mas pela «ciência do amor».

O seu amor a Jesus levava-a a pôr por detrás de muitas palavras do Novo Testamento um caldeirão musical. A menor alusão voltava a abrir a imensa Promessa e despertava a grande Presença. Cada frase proveniente do coração da Sabedoria convertia-se algo assim como num fio que unificava toda a sua existência. Em cada pormenor ela via brilhar todo o mosaico. S. Agostinho compara a Sagrada Escritura a um grande bosque no qual cada folha sussurra suavemente a grande mensagem. Além disso, os autores bíblicos, com a sua mentalidade judaica, gostavam de jogar com ressonâncias simbólicas.

Isabel faz-nos pensar. Nós não lemos tão assiduamente como ela a Palavra. E muitas vezes a nossa leitura, em vez de dilatar a alma, encolhe-nos. Buscamos o sentido literal: o que o autor quis dizer nesse lugar determinado, naquele momento dado, para aqueles destinatários e naquele contexto sócio-cultural concreto. Raspamos o texto até ao osso. Mas o osso não alimenta. O osso não faz vibrar, amar. Além disso, deve-se ser muito especialista para fazer isso bem. Se essa fosse a única chave de leitura, os pequenos seriam dignos de lástima. Enquanto Jesus saltava de alegria diante da ideia de que o Pai «revelava aos mais pequenos o que estava escondido aos sábios e aos inteligentes» (Mt 11, 25).

Isabel, em resumidas contas, era um desses pequenos. Tomava nas suas mãos o Novo Testamento e os Salmos, e punha-se a ler. E sem ter a menor formação exegética, com uma leitura amorosa e assídua, e em virtude do amor que ardia no seu coração, conseguia ler em profundidade e escutar em estéreo… «Deus amou tanto o mundo, que lhe entregou o seu Filho único» (Jo 3, 16) como dom do seu imenso amor. E neste décimo terceiro «dia» Isabel explica em que consiste a fé neste «imenso amor que permite a Deus cumular a alma segundo a Sua plenitude».

A Palavra de Deus é um grito de amor. Para todos os homens. Para todos os tempos. A Palavra de Deus quer sacudir-te, despertar-te, pôr-te em movimento. A Palavra não fica satisfeita se apenas a regista e a examina o teu cérebro. O cérebro procura compreender, mas só a pessoa pode comprometer-se. A Palavra quer alimentar toda a tua pessoa, e, em certo sentido, comê-la. A Palavra não se vê saciada até que não seja acolhida por um coração que se rende à mensagem.

Isto é o que a Palavra quer provocar: uma reacção de amor, uma assimilação pessoal, uma actualização permanente. A Palavra divina deseja tocar as cordas da alma e voltar a escutar-se numa harmoniosa resposta humana. «Esse é o cântico que se levantava na alma do meu Mestre – escreve hoje Isabel –, e cujos ecos quer escutar na minha».

E na tua. Ou dirige-se a ti menos do que a ela?

O texto de Isabel

  1. «Instaurare omnia in Christo» [Recapitular todas as coisas em Cristo: Ef 1, 10). É ainda São Paulo quem me instrui, São Paulo que acaba de mergulhar no grande conselho de Deus e quem me diz «que Ele em si próprio decidiu restaurar todas as coisas em Cristo» (Ef 1, 9-11).

Para que realize pessoalmente este plano divino, é ainda São Paulo que vem em minha ajuda e que me vai traçar uma regra de vida. «Caminhai em Jesus Cristo, diz-me, enraizada n’Ele, edificada por Ele, fortalecida na fé, e n’Ele crescendo cada vez mais pela acção de graças» (Col 2, 6-7).

  1. Parece-me que caminhar em Jesus Cristo é sair de si, perder-se de vista, abandonar-se para entrar mais profundamente n’Ele a cada minuto que passa, tão profundamente que nele se fique enraizada, e que em todo acontecimento, [e a] todas as coisas, se possa lançar este belo desafio: «Quem me poderá separar do amor de Jesus Cristo?» (Rm 8, 35). Quando a alma está fixa n’Ele em tais profundidades, quando as suas raízes assim se afundaram, a seiva divina expande-se nela em ondas, e tudo o que é vida imperfeita, banal, natural é destruído; e então, segundo a linguagem do Apóstolo, «o que é mortal é absorvido pela vida» (2 Co 5, 4).

A alma, assim “despojada” de si mesma e “revestida” de Jesus Cristo (Col 3, 9-10; Gl 3, 27), já não tem a temer os contactos do exterior, nem as dificuldades do interior, porque estas coisas, longe de lhe constituírem obstáculo, apenas conseguem «enraizá-la mais profundamente no amor» (Ef 3, 17) do seu Mestre. Em tudo, para com tudo e contra tudo, está em estado de «o adorar sempre por causa d’Ele próprio» (Sl 71, 15). Por ser livre, liberta de si mesma e de tudo, pode então cantar com o salmista: «Se um exército me cercar, não temerei; se um combate surgir, terei esperança contra tudo; porque Jahveh me esconde em segredo na sua tenda» (Sl 26, 3. 5) e esta tenda não é senão Ele mesmo. Eis o que, parece-me, São Paulo entende quando [diz]: «ser enraizado em Jesus Cristo».

  1. E agora, que é ser edificado n’Ele? O profeta canta ainda: «Elevou-me sobre um rochedo, e então a minha cabeça levanta-se acima dos inimigos que me rodeiam» (Sl 26, 5-6); parece-me, bem ser a figura da alma «edificada em Jesus Cristo». Ele é esse rochedo em que ela [é] elevada acima de si mesma, dos sentidos, da natureza, acima das consolações ou das dores, acima do que não é unicamente Ele. É aí que, em plena posse de si, se domina, se transcende, e ultrapassa também todas as coisas.

São Paulo recomenda-nos, agora, que esteja fortalecida na fé: nessa fé que nunca permite à alma adormecer, mas que a mantém sempre vigilante sob o olhar do Mestre, totalmente recolhida na sua palavra criadora, nesta fé «no tão grande amor» (Ef 2, 4) que permite a Deus, diz-me São Paulo, encher a alma «segundo a sua plenitude» (Ef 3, 19).

  1. Enfim, ele quer que «eu cresça em Jesus Cristo pela acção de graças»: pois é nela que tudo deve acabar! «Pai, dou-te graças!» (Jo 11, 41). Eis o que se cantava na alma do meu Mestre, cujo eco Ele quer ouvir na minha! Mas, parece-me que o «cântico novo» (Ap 14, 3) que melhor pode encantar e cativar o meu Deus é o de uma alma despojada, liberta de si mesma, na qual Ele possa reflectir tudo o que Ele é e fazer tudo o que Ele quer. Tal alma, sob o seu toque, comporta-se como uma lira, e todos os seus dons são como tantas outras cordas, que vibram para cantar dia e noite o louvor da sua glória!

Sugestões para orar

Escreve Isabel à sua amiga Francisca de Sourdon, a quem chamava amigavelmente «Framboesa»: «Alimenta a tua alma com os grandes ensinamentos da fé capazes de lhe revelar toda a sua riqueza e o fim para que Deus a criou!» (GV 11).

Renova hoje muitas vezes a tua atenção a Jesus, presente no céu da tua alma; e cada vez que o faças, alimenta «essa fé que não deixa que a alma adormeça». Mantém a tua alma «em vela sob o olhar do Mestre, concentrada na sua palavra criadora». Assim ocuparás bem a jornada; mas aprende de Isabel a adorar a Deus «em todas as situações, apesar de tudo», como um riacho impulsionado pela sua fonte, sem a menor crispação. Sê fiel à súplica de Jesus, que é também uma promessa: «Permanece em mim e eu em ti» (Jo 15, 4).

E, na morada interior da tua alma, repete, de vez em quando, com Isabel: Ó Verbo eterno, Palavra do meu Deus, quero passar a minha vida a escutar-vos, quero tornar-me inteiramente dócil ao vosso ensino, a fim de tudo aprender de vós. Fascina-me (NI 15).


Imagem de Jackson David por Pixabay