
Oratório Peregrino
Um oratório à maneira de um viático para tempos de carestia
Uma proposta desenvolvida em parceria com
Irmãs do Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro
XXX Passo | Livre de tudo excepto de amar
De novo o Apocalipse, com os harpistas e os cantores do céu. Mas o acento continua a recair sobre a nossa existência terrena: como «seguir» a Jesus «já nesta terra», como viver n’Ele e como render homenagem à formosura de Deus.
A resposta vai ser dupla. Há que chegar a ser «totalmente livres»; e esta liberdade consegue-se – como se fosse um presente para o qual fizemos lugar – deixando que Cristo entre plenamente em nós. Os dois aspectos estão intimamente interligados. Por um lado, a obra de Deus, e por outro, como resposta, às exigências do Amor. É o que Isabel chama «imolação contínua», um esforço por chegar a ser «totalmente livres, excepto no nosso amor».
Então, serei «semelhante» a Jesus, «conforme» a Ele, «levarei o seu nome»: o «fiel», o «verdadeiro»! O meu nome é a minha identidade: serei alguém profundamente unido a Jesus. E levarei também o «nome do Pai»: em Jesus, serei um da sua família, seu filho, e Ele poderá reconhecer em mima sua formosura. A minha vida, «escondida na de Cristo», será um espelho da sua formosura e uma harpa cujas cordas cantarão o seu louvor.
«Que grande renúncia a si mesmo isto supõe!», exclama Isabel. E insiste nesse «fundo de iniquidade» que há em nós, do qual nascem «todas as nossas sensibilidades, os interesses pessoais e tudo o demais». Esta renúncia a si mesmo – «imolação contínua», não o esqueçamos – não pode ser efémera, esporádica, passageira, mas deverá fazer-se por assim dizer constante se queremos viver «habitualmente em Deus». Assim soa a fórmula de S. Paulo, que, apesar das aparências, está carregada de promessas: «morrer». «Essa é a condição – insistente de Isabel –: ter morrido!». Morrido de verdade, morrido em profundidade. Pelo contrário, o «eu» egoísta e tenaz voltará a florescer continuamente. Pois as raízes desse «eu» desordenado e açambarcador são muito profundas…
Um último passo remata, coroa e rege todo o pensamento ascético de Isabel, e o do Novo Testamento: deixar que Cristo ressuscitado viva em nós. «Enquanto vivo nesta carne, vivo da fé no Filho de Deus». Só Cristo poderá limpar esse sórdido egoísmo e fazer-nos entrar n’Ele, onde «tudo é puro e tudo é santo». Isabel tinha-o compreendido assim muito cedo, quando fez gravar no seu crucifixo de profissão estas palavras de S. Paulo: «Vivo eu, mas não sou eu: é Cristo quem vive em mim» – umas palavras que recorda hoje com esse complemento cheio de ternura que explica tudo: «Ele me amou e se entregou por mim» (Gl 2, 20).
Entende-me bem: nada do que Isabel escreve é contra ti, contra o crescimento da tua personalidade. Pelo contrário, tudo está pensado em função da tua libertação. Os teus pequenos ídolos têm-te encarcerado e mantêm-te ajoelhado diante de ti mesmo; custa-te levantar para sair de ti mesmo, e, no entanto, aí se encontra a verdadeira felicidade! Repara como Jesus te ensina a «amar a Deus com todo o coração e ao próximo como a ti mesmo (Mt 22, 36-39). Ou seja, a amá-lo com a mesma facilidade com que te amas naturalmente a ti mesmo… Com plena liberdade para passar de ti mesmo a Deus e ao próximo.
Estes dias de retiro servir-nos-ão para nos dar conta de que ainda amamos a Deus com muita vacilação e ao nosso próximo com muita lentidão, por falta de liberdade interior. Por falta de soltura evangélica… E, entretanto, a vida de Cristo é-nos oferecida a mãos cheias. Isabel lança-se a ela, pedindo ao seu Mestre que «a mergulhe n’Ele, que a invada, que Ele ocupe o seu lugar, para que a sua vida não seja senão uma irradiação da Sua» (NI 15).
Neste texto de hoje sobre as «virgens», «livres de tudo, excepto do seu amor», e «que seguem o Cordeiro», está talvez pensado em quantos e quantas, como ela, foram chamados a uma vida totalmente orientada para a oração?
Certamente essa é a sua vocação de contemplativos e contemplativas, esse é o seu carisma e a sua primeira responsabilidade na grande comunidade eclesial dos amigos de Cristo. Mas não é um privilégio exclusivo deles. Quando ainda era uma jovem leiga que avançava «por entre as sarças do caminho», Isabel aprendeu a ser contemplativa no meio do mundo e a viver «na cela do seu coração» (NI 5). Noutras partes «o Pai busca adoradores» (Jo 4, 23). E nas suas cartas não cessa de propor aos destinatários das mesmas esse mesmo ideal, que se encarnará de formas diferentes segundo a situação concreta de cada um.
O essencial na «renúncia de si mesmo» está em voltar a «orientar-se» (Ct 128) continuamente para o amor a Deus e ao próximo. Nesses dias escreve a sua mamã: Tudo depende da intenção». Mas uma intenção vital, activa, atenta, orientada para o grande Presente. Por isso, Isabel acrescenta: «Podemos santificar até as coisas mais pequenas, e converter as acções mais comuns da vida em acções divinas» (Ct 309).
E o Deus presente responderá. «Quando uma alma é fiel aos mais mínimos desejos do seu Coração – escreve a nossa carmelita a uma jovem amiga leiga –, Jesus, por sua vez, é fiel em velar por ela e estabelece-se entre os dois uma dulcíssima intimidade» (Ct 278).
O texto de Isabel
- «E vi o Cordeiro, de pé na montanha de Sião, e com Ele cento e quarenta e quatro mil que tinham o seu nome e o nome de seu Pai escritos nas frontes. E ouvi uma voz, como o rumor de muitas águas, e o estrondo dum grande trovão; e a voz que ouvi era como a de muitos harpistas que tocavam as harpas. E cantavam como que um cântico novo diante do trono; e ninguém podia saber esse cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil, porque são virgens… São esses que seguem o Cordeiro por onde quer que Ele vá…» (Ap 14, 1-4).
Há pessoas que já desde esta vida fazem parte dessa «geração pura como a luz» (Sb 4, 1) e trazem já marcado nas frontes o nome do Cordeiro e o de seu Pai. «O nome do Cordeiro»: pela semelhança e conformidade com Aquele que São João chama «o Fiel, o Verdadeiro» (Ap 19, 11) e no-lo mostra «vestido com um manto tinto de sangue» (Ap 19, 13). Essas pessoas são também os fiéis, os verdadeiros, com a veste tingida pelo sangue da contínua imolação. «O nome de seu Pai»: porque projecta sobre eles a beleza das suas perfeições, todos os divinos atributos se reflectindo nestas almas; e assim são como cordas que vibram e cantam «o cântico novo».
«Seguem também o Cordeiro por onde quer que Ele vá», não só pelas largas vias e fáceis de percorrer, mas também nas veredas espinhosas, por entre as silvas do caminho; é que essas almas são virgens, quer dizer, livres, separadas, despojadas, de tudo libertas, salvo do seu amor, apartadas de tudo e, sobretudo, de si mesmas, desapegadas de todas as coisas, tanto de ordem sobrenatural, como de ordem natural.
- Quanta renúncia de si é que isto não supõe! – que morte! – digamos com São Paulo: «Quotidie morior» [Morro cada dia: 1 Co 15, 31]. O grande santo escrevia aos Colossenses: «Vós estais mortos, e a vossa vida está escondida com Jesus Cristo em Deus» (Col 3, 3).
Eis a condição: é preciso estar-se morto! Sem isto, pode-se estar escondido em Deus em certas horas; mas não se VIVE habitualmente neste Ser divino, porque todas as sensibilidades, preocupações pessoais, e tudo o mais, nos afastam disso.
A alma que contempla o seu Mestre com esse «olho simples que torna todo o corpo luminoso» (Mt 6, 22), está defendida «do fundo de iniquidade que nela existe» e de que se lamentava o profeta (Sl 17, 24). O Senhor fê-la entrar «nesse lugar espaçoso» (Sl 17, 20) que não é senão Ele mesmo: em que tudo é puro, tudo é santo!
Ó bem-aventurada morte em Deus! Ó suave e doce perda de si no Ser amado, que permite à criatura exclamar: «Vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim; e o que tenho de vida neste corpo de morte, tenho-o na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou por mim» (Gl 2, 20).
Sugestões para orar
Deus ama de maneira irresistível aqueles que, com profundo humanismo, se entregam aos demais com absoluta atitude de serviço. Ditoso tu, ditoso tu, se és um desses! Mas Deus gostaria também que qualquer gesto de amor se inspirasse também, em profundidade e com conhecimento de causa, em Jesus: «Este é o meu Filho amado, escutai-O» (Mt 17, 5). Olha-o frequentemente, consulta-o conscientemente: Que queres que eu faça neste momento? Que terias feito tu nesta situação em que me encontro?
Isto não requer muito tempo: o tempo de um olhar, de um flash para ver melhor. Podes acostumar-te a fazê-lo, como Isabel, no meio do teu trabalho e das tuas preocupações, em plena entrega aos demais, à tua família, à tua comunidade, enquanto realizas as tuas tarefas que te encomendaram, sejam grandes ou pequenas. «Vivamos de amor – dizia Isabel, seguindo a sua irmã Teresa de Lisieux –, entreguemo-nos totalmente, imolando-nos momento a momento e fazendo a vontade de Deus sem buscar coisas extraordinárias» (Ct 172).
«Irmãzinha – escrevia Isabel a Guida –, não percamos um só sacrifício. Podemos recolher tantos num dia… Com as pequenas, tens muitas oportunidades. Oferece tudo ao Mestre» (Ct 298). Custa dar o primeiro passo, mas depois saboreia-se a distensão interior do trato com o Senhor e a dita de estar «orientada totalmente para Deus» (UR 3).
Isto é muito confortante. Mais do que «sacrifícios», seria melhor falar d «encontros»; e mais do que «mortificações», de «vivificações». Aproveita hoje essas pequenas coisas» de cada dia: encontros, compromissos menores, sorrisos, delicadezas, uma palavra boa no momento apropriado, as necessidades do próximo, tudo o que leva consigo a boa marcha da vida familiar, comunitária, profissional, de distracções…
Não fiques nas boas palavras: actua! Mas também não fiques sempre nas acções, sem ter umas palavras amáveis ou cordiais. Deus gosta do teu trabalho, mas também gosta também do teu olhar e de umas palavras nascidas do coração. «Orientar tudo para Deus», diz Isabel.
Para compreender melhor o sentido profundo destes pontos que te dei, podes repetir frequentemente a Cristo, com Isabel: Me amaste e te entregaste por mim…