
Letra viva | Valores de uma cultura que cuida e não mata
Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
Filipe Almeida*
Aí está, uma vez mais, a nossa sociedade agitada com a discussão em torno da eutanásia!
Discussão que exige, antes de tudo o mais, saber do que estamos e de quem estamos a falar, de saber o que nos cabe fazer e que riscos estamos a correr.
Do QUE estamos a falar?
Eutanásia é provocar a morte a alguém a seu pedido, matar pois, sob a justificação de que o seu sofrimento é intolerável e intratável, outorgando-se-lhe como terapêutica a sua própria morte. Ou seja, eutanásia/morte é a resposta, certamente a menos difícil, que se quer dar como se fosse a única possível ao repto do extremo sofrimento humano.
E acentua-se esta proposta indicando que não permitir a eutanásia, não facultar a morte como solução é condenar o indivíduo ao sofrimento atroz e permanente…
E quer-se legitimar o pedido de eutanásia no reconhecimento da liberdade individual, expresso no exercício de uma autonomia absoluta…
E pretende-se conquistar a aprovação social da eutanásia, acenando com um exercício de compaixão para com quem sofre, como se de uns coitadinhos se tratasse…
Uma falácia argumentativa, esta, porquanto.
De QUEM estamos a falar?
Falamos de quem vive o seu tempo de morrer, um especial tempo de viver que experimenta a radicalidade da vulnerabilidade humana, a consciência da finitude…
falamos de quem aguarda o melhor de nós, na comunhão de uma identidade moral que por isso nos não distancia, antes nos irmana e nos aproxima na partilha de um viver solidário e aberto à esperança…
falamos de quem queremos seja receptáculo da nossa desmesurada atenção, destinatário da nossa humana compaixão, sujeito da nossa inclinada reverência…
falamos de quem não quer ser abandonado à solidão de uma estiolante autonomia, de quem dispensa olhares resignados…
falamos de quem se nos confia porfiadamente, de quem procura espaços de escuta, de quem espera comungar os nossos dias…
falamos de quem não se ufana com a sua liberdade, de quem recusa a ilusão da imortalidade… falamos de quem não quer ser descartado por uma medicina autista, mas valorizado numa medicina humanizada
E o que nos cabe fazer?
Disponibilizar uma medicina especializada, capaz de responder com eficácia aos profundos desafios deste especial tempo de viver, a medicina paliativa:
não para chorar a dor mas para a aniquilar
não para mentir com uma luta desigual, mas para assegurar o controlo transparente do sofrimento humano;
não para enganar com o pregão do respeito pelo teu decidir mas para sorrir com o respeito pela tua dignidade;
não para impor obstinadamente uma terapêutica mas para definir uma estratégia no encalço do conforto, da vivência da espiritualidade, da experiência possível da paz;
disponibilizar uma medicina paliativa que mate a morte obscena configurada na violência da eutanásia, antes nobilite a humanidade que impregna um morrer digno
Que riscos estamos a correr?
Não totalmente previsíveis, mas seguramente faremos perigar a vida humana como valor ontológico a respeitar, ela mesmo, esteio de tantos valores a preservar;
alargaremos inevitavelmente os limites à sua aceitação, numa ameaçadora rampa deslizante, aliás, já objectivada em propostas legislativas para votação;
e desmobilizaremos uma sociedade para com o compromisso fundamental com a exigente protecção devida ao ser humano doente.