Ter. Abr 16th, 2024

Artigo recolhido do SNPC

A “canonicidade” da Sagrada Escritura, questão que atormentou a Igreja dos primeiros séculos, e que estava ligada à necessidade de elaborar uma unidade de medida teológica – daí a palavra “cânone”, que remete, em grego, para a régua que permite efetuar medições, uma espécie de metro primordial –, visa evidenciar qual é a Palavra de Deus autêntica colocada por escrito.

Esta verificação não podia ser unicamente histórica e literária, na suposição de que certos livros chamados apócrifos, ou seja, “ocultos”, e por isso relegados para as margens da comunidade eclesial, foram rejeitados porque se apoiavam em lendas e deixavam espaço importante à imaginação.

Se, nesse caso, se tratasse de aplicar uma regra, poder-se-ia, com justiça, questionar outras páginas tidas por “canónicas” que comportam elementos míticos (mesmo se esses elementos foram rearranjados), servindo-se da imaginação através de narrativas ou parábolas para transmitir a verdade.

A medida também não é a da espiritualidade: os apócrifos judeus e cristãos comportam páginas de forte conotação mística, com grande moralidade e ascese (como as famosas “narrativas gnósticas”).

A historicidade também não é discriminatória em si: os próprios Evangelhos canónicos misturam a história e a fé; quanto aos evangelhos apócrifos, incluem evocações históricas provavelmente autênticas sobre Jesus de Nazaré (como é o caso de algumas palavras de Cristo conservadas no “Evangelho de Tomé”).

Trata-se, na realidade, de uma escolha concretizada segundo critérios teológicos e eclesiais rigorosos, com a implicação de questões problemáticas, como a inspiração divina das Escrituras, a Tradição da Igreja, a presença do Espírito Santo como intérprete vivo da Palavra de Deus.

Observemos, antes de mais, como é que a Igreja chegou à definição do cânone bíblico. O problema já se tinha colocado no judaísmo para as Escrituras hebraicas. A diáspora judaica tinha acrescentado aos livros bíblicos escritos em hebraico sete outras obras compostas ou vindas até nós em língua grega (Tobias, Judite, primeiro e segundo livro dos Macabeus, Sabedoria, Sirácida [Eclesiástico] e Baruc), bem como algumas passagens gregas situadas nos livros hebraicos de Ester e de Daniel. Trata-se do famoso “cânone alexandrino”, adicionado à antiga versão grega da Bíblia em Alexandria, no Egito.

Este cânone alargado foi definitivamente acolhido pela Igreja católica no Concílio de Trento (1546), enquanto as Igrejas protestantes optaram pelo cânone exclusivamente “hebraico”. Algumas décadas depois, um teólogo, Sisto de Siena, qualificará estes sete livros de “deuterocanónicos” (segundo cânone), ao passo que os protestantes os definiriam como “apócrifos”, relegando-os para uma categoria inferior, extra-canónica.

Surgem duas interrogações. Em primeiro lugar no plano histórico: que cânone a Tradição cristã antiga acolheu? Das 350 citações veterotestementárias [do Antigo Testamento] presentes no Novo Testamento, pelo menos 300 vêm diretamente da versão grega antiga, dita dos “Setenta”. Pode deduzir-se que os autores do Novo Testamento consideravam inspirados os sete livros deuterocanónicos pertencentes à Bíblia.

Esta convicção foi partilhada por toda a Igreja dos três primeiros séculos, à exceção de um autor do séc. II, Militão de Sardes, fiel ao cânone hebraico. Um autor tão importante como Orígenes, do séc. III, afirmava explicitamente a necessidade de utilizar igualmente os livros deuterocanónicos como Palavra de Deus.

Esta harmonia foi estilhaçada no séc. IV, quando alguns Padres da Igreja – Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Hilário de Poitiers, e sobretudo Jerónimo, o tradutor latino da Bíblia – regressaram ao cânone hebraico, à “Hebraica veritas”, às raízes hebraicas das Escrituras, como dizia S. Jerónimo. Acabou por ser a primeira versão que prevaleceu na Igreja, apesar de algumas tensões que foram resolvidas pelo Concílio de Trento para a Igreja católica, e de outra maneira pela Reforma.

Daqui surge a segunda interrogação, decisiva: sobre que fundamento um livro é reconhecido como inspirado por Deus, e portanto “canónico” e fonte da revelação divina?

Na perspetiva católica, um livro é canónico quando a Tradição da Igreja, iluminada e guiada pelo Espírito Santo para salvaguardar o património da revelação, acolheu esse livro como inspirado por Deus, e assim se manteve no seu ensinamento, para além de algumas hesitações temporais. A fé eclesial, na sua globalidade e na sua continuidade, com a presença do Espírito Santo nela, torna-se a pedra angular teológica.

A posição luterana diverge: a Escritura não pode ser interpretada contra Cristo, mas para Cristo, escrevia Lutero; das duas, uma: ou bem que a Escritura se refere a Cristo, ou bem que não pode ser considerada como verdadeira Escritura. Esta via cristológica é importante mas comporta um risco porque tende a colocar de lado a lenta progressão histórica das Escrituras, a partir do Antigo Testamento, através do longo processo de evolução composto por múltiplas ramificações, até à tensão messiânica final e, portanto cristológica.

Por seu lado, Calvino considera como sinal da canonicidade de um livro bíblico o testemunho direto do Espírito Santo no interior do crente, explicitado e confirmado pelos frutos espirituais que ele produz. Reconhecendo que o Espírito ilumina os fiéis, esta visão arrisca-se a ser demasiado “subjetiva” e reter apenas as páginas “espirituais”.

Apócrifos

Se uma mulher chamada Ana pretendesse conhecer a passagem exata do Evangelho onde entra em cena a sua homónima, a mãe de Maria, e talvez descobrir uma passagem que dissesse respeito ao pai da Virgem, Joaquim, percorreria em vão todas as páginas de Mateus, Marcos, Lucas e João.

Se se quisesse demonstrar que Jesus nasceu numa gruta, aquecido pelo bafo de um boi e de um burro, que os magos eram três reis iranianos, que o nome do soldado romano que atingiu o lado de Jesus com uma lança era Longino, que Verónica, uma mulher de Jerusalém, limpou o rosto de Jesus na sua marcha para o Calvário, recebendo em troca a imagem do seu rosto no tecido que o enxugou, procurar-se-ia em vão nos quatro Evangelhos.

Todas estas informações foram encontradas nessa vasta literatura dos primeiros séculos cristãos denominada de “apócrifa”, que a Igreja opõe aos livros “canónicos” e “inspirados” do Novo Testamento.

Muitos escritos foram excluídos deste catálogo, ou deste cânone, alguns muito antigos (séculos I e II): é o caso do precioso “Evangelho de Tomé”, que conserva 114 palavras de Jesus (algumas encontram-se nos Evangelhos, outras não, ainda que possuam alguma verosimilhança histórica), o “Evangelho de Pedro”, a mais antiga narração não canónica da paixão de Cristo, ou ainda o famoso “Protoevangelho de Tiago”, que se interessa pelo nascimento e adolescência de Maria, e pelo seu casamento com José.

As narrações dos apócrifos são volumosas: compreendem todos os géneros do Novo Testamento (atos de diversos apóstolos, cartas, apocalipses) e textos mais recentes. Floresceram na terra fértil da piedade popular e são um eco da devoção, da imaginação, mas igualmente de desvios doutrinais do mundo eclesial de onde provêm. Os apócrifos são por vezes a expressão de círculos intelectuais mais restritos, como os textos gnósticos egípcios.

Os apócrifos guardaram frequentemente dados, elementos, recordações de acontecimentos e de palavras de Cristo provavelmente autênticas e não presentes nos Evangelhos canónicos. Não esqueçamos que os próprios Atos dos Apóstolos transmitem uma frase de Jesus citada por S. Paulo e ignorada pelos Evangelhos canónicos: «Há mais felicidade a dar do que a receber» (20, 35). E o evangelista João sabe bem que «há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever» (21, 25).

Com as suas informações verdadeiras ou presumidas, os apócrifos tiveram grande influência na história da arte cristã, na liturgia (a apresentação de Maria no templo, evocada a 21 de novembro, é apócrifa, encontrando-se no “Protoevangelho de Tiago”), e mesmo sobre a teologia. No seio de todas estas narrações livres e coloridas, os apócrifos comportam pepitas de ouro históricas que nos permitem reconstruir memórias arcaicas sobre Jesus e mesmo do próprio Jesus.

É sobretudo a vida da Igreja dos primeiros séculos que surge nestas páginas, o seu fervor, a sua tomada de consciência da grandeza do acontecimento cristão. Num apócrifo egípcio, o “Evangelho de Filipe”, pode ler-se: «Se eu digo que sou judeu, ninguém se comove. Se eu digo que sou romano, ninguém se impressiona. Se eu digo que sou grego, bárbaro, escravo, livre, ninguém se agita. Mas se eu digo que sou cristão, o mundo treme».

Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura, biblista
In “150 questions à la foi, ed. Mame
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem de StockSnap por Pixabay